domingo, 26 de março de 2017

Saudade(s) e afetos

Domingo de chuva. 
Aqui da janela do sótão, as gotas fazem um barulho manso no telhado, deslizam pelos vidros e sobre as árvores, juntam-se em fios de água, ensopam a areia dos caminhos, lavam as pedras da calçada. Fica tudo fresco e limpo e apesar do cinzento do céu, uma luz doce invade o dia. Parece um choro brando.

Acordei com saudades. Dessas que teimam em se disfarçar de outras coisas, corpo dorido e sono a persistir, gestos lentos e vagos, imagens a inundarem o coração, para além da manha que já vai alta e pede a celebração da rotina. Uma rotina boa, em jeito de ritual, porque é domingo, os rapazes vão chegar para o almoço entre abraços e preguiça.
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Mas acordei com saudades, daquelas que nos comprimem as palavras e dão primazia ao silêncio.

Saudades do passado, menina com vestido novo no largo da igreja, depois da missa, o cheiro das regueifas, das mimosas, os bons dias entre os vizinhos, pequenas conversas e risos, a minha avó a dar-me a mão, os tremoços e o arroz doce na mesa, em jeito de agradecimento ao senhor. Por estarmos vivos, por ser quem somos, por o futuro se ancorar numa estranha fé na vida. Por tudo ter um lugar e o lugar ter quase tudo.

E acordei com saudades. De ser cuidada e protegida de tomar a dianteira, de ser poupada a ter sempre a lanterna pronta para iluminar o caminho, a mim e aos meus, sem desistir. De não ter que fazer perguntas e construir as respostas, de não andar continuamente a esculpir o tempo, perscrutando os seus desígnios e sentidos, os seus alcances e mistérios. Porque cansa. E ainda cansa mais em tempo de invernia. 

Acordei com saudades. De me deitar na eira, em dias de sol, aninhada e contente, a minha avó a escolher feijões e a explicar-me o sentido da vida e de ser mulher. Com precaução e verdade.  E eu a acreditar, pelo seu tom de voz, as suas palavras sábias e a sua assertividade, capaz de afastar maus olhados e tempestades frias. Em tempo de primavera.

Deve ter sido por isso que acordei com saudades. Do tempo quente e do amor, incondicional e protetor. Um amparo para a alma. Um descanso para o corpo e para a lonjura do futuro.  


quarta-feira, 8 de março de 2017

Falar delas

Relembremos as suas vidas.
Os filhos que levaram pela mão, no principio das madrugadas, a roupa lavada no lavadouro, os aventais a cobrir o vestido gasto pelo tempo, o cabelo preso na missa de domingo, o arroz doce na mesa para alindar a festa. As horas a correrem devagar e o olhar vago pela janela. 

Relembremos as suas vidas.
Levantar cedo e preparar o leite, fazer a cama e arejar a casa, cortar o pasto, regar o quintal, fazer a sopa, numa panela grande, à lareira e distribui-la pelos pratos, ficando com a menor parte. Tornar-se invisível e transparente na paisagem das casas que cuidam e alindam. Com sabem e podem.

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 Fui vê-las e envolvi-me de novo no seu acolhimento feito de silêncio, poucas palavras, sorrisos mornos e amigos, uma maneira de contemplar os outros, como se vissem um filme e não pudessem ser os atores principais, ainda que a sê-lo. A sua condição de segundo plano, pausadamente aceite e interiorizada numa espécie de acordo tácito construído desde a infância.  

Relembremos as suas lutas miudinhas, pequenos feitos, grandes milagres, multiplicar o pão e a fruta, esticar o dinheiro até ao fim do mês, comprar as galochas para a chuva, oferecer rebuçados para adoçar os filhos, aguentando as criticas de más gestoras da economia doméstica. E culpadas de todo o insucesso, pela pertença a grupos socialmente desfavorecidos.

Relembremos  o seu lado de dentro, atacando os preconceitos e as menos valias, aquelas que pautam as nossas representações sobre as suas vidas e o seu alcance. Porque estas mulheres constroem os dias e o futuro, numa labuta discreta, mas poderosa.
Reconheçamos a sua presença e poder em todos os lugares do mundo. Em casa, na rua, nas escolas. Hoje e todos os dias, com práticas de participação e defesa dos seus direitos e da sua dignidade.