domingo, 26 de novembro de 2017

Recordar a Infância

Tinha-se esquecido de tudo, mas não das pedrinhas lisas que guardava no fundo da gruta. Nem do cheiro da brincadeira no fim do verão, a arrastar mil risos e demoras, em lugares cheios como os da rua, por entre carros de bois, bicicletas distraídas e portões fechados ao cair da noite. 
Tinha-se esquecido de tudo, mas não das festas breves em gatos pardos, picos de roseiras bravas em cômoros de amoras, salpicos do mar bravo aos domingos, o jeito da areia a arranhar a pele. E a pele morena de tanto sol. Vem para dentro, ficas trigueira! Ser menina e ser recatada, branca e pura, branca e leve, ter destino e desconhecer.

https://i.pinimg.com/736x/59/79/38/5979387a5be42cf93e3699a083956178.jpgTinha-se esquecido de tudo, mas não do quente do café à lareira da casa, da broa a fumegar em forno de lenha, da languidez das histórias contadas ao luar, por entre sustos bons e protegidos. Um arrepio na barriga e a alegria de escutar os uivos do lobo no cimo do monte. E fazem mal? fazem, pois, mas não vêm cá, descansa.

Tinha-se esquecido de tudo, mas não da casa da mestra, meninos para um lado, meninas para outros, então, que de pequenino é que se torce o pepino, e assim é que se quer e assim é que está bem. As canções de roda e o faz de conta, missas e batizados, água fresca do poço em pucarinhos de alumínio, o terço no final do dia, por entre segredos e distrações consentidas. 

Tinha-se esquecido de tudo, mas não das rodelas de batata com azeite sobre a barriga, nos dias mal- humorados da vida a acontecer. Nem das palavras doces para amparar desgostos e revelar mistérios, aquele das barrigas a crescerem, sem medo e aviso prévio, e com bebés lá dentro. Nem das idas à igreja, por entre silêncio e rezas, nem da feira, da venda e das conversas amigáveis dos crescidos.     

Tinha-se esquecido de tudo, agora que o tempo era mais curto e menos brincado. Mas mantinha dentro de si, as pedrinhas lisas, os gatos pardos, as gotas de mar, os uivos dos lobos, a casa da mestra, as canções de roda, o silêncio da igreja, a faina da venda, a elucidação da vida. E sobretudo a imensa presença do tempo longo em fins de tarde, a arrastar mil risos e demoras e muito brincar.
Talvez afinal se lembrasse de quase tudo... 

sexta-feira, 17 de novembro de 2017

Se cá estivesses...

Ontem fez dez anos que partiste. Lembro-me de levar os rapazes à escola e ao chegar à minha, ter tido essa noticia, de forma abrupta e violenta, incompreensível. Que outra forma existe para saber que ficámos sem chão e sem colo? 

http://2.citynews-leccotoday.stgy.ovh/~media/original-hi/50228517844170/varenna-mostra-naif-2.jpegSe cá estivesses, verias como as minhas rugas se multiplicaram, os cabelos estão cada vez mais brancos, e as mãos, as minhas mãos, parecem-se cada vez mais com as tuas. Notarias também que algumas das coisas que digo fazem rir os teus netos, entre o divertido e o (in)conformado, comentando então, isso nem parece teu! Mas é. Porque a vida passa e todos vamos para lá, como dizias a rematar a conversa, quando tentávamos que brigasses com os medos e silêncios do teu corpo cansado.  

Se cá estivesses, talvez discutíssemos as noticias do dia, no meio das perguntas que fazias para te inteirares do desenvolvimento do mundo e das pessoas, recusando as novelas e os programas de entretenimento. Se cá estivesses, fazíamos a sopa em conjunto, contigo a gabar os brócolos e os grelos e a querer batatas em vez de arroz. Se cá estivesses, hoje, verias os teus netos e juntas, teceríamos palavras a retocar o amor que sentimos por eles.  Se cá estivesses pegarias na tua bisneta ao colo e os teus olhos ficariam cheios de alegria à mistura com uma lágrima contente.

Se cá estivesses...mas não estás. E eu escrevo estas palavras para que a saudade saia de mim e tu continues viva e inteira junto de nós. É assim que te quero e te queremos, hoje e sempre, mãe.  

sábado, 11 de novembro de 2017

Venha o natal

Logo pela manha enredámo-nos na pedagogia, como coisa nossa e dos dias, educadores que somos em jornadas de muito amor e cansaço. A lei dos contrários, a confirmar que a vida não é um mar de rosas e que temos que permanecer lúcidos para retirar os espinhos das flores que acolhemos no regaço. Com muito cuidado e afinco, para não desistir deste cuidado permanente de que somos autoras. 

https://i.pinimg.com/236x/17/89/df/1789df32a69854cf8cdb94d2f90bb26c.jpgEnredámo-nos na pedagogia, primeiro em forma lenta, que a manha ainda estava com sono e o nosso corpo adormecido, depois de maneira ativa, barulhenta, partilhando, contrapondo, discutindo e apresentando as nossas razões das profissionais que somos e queremos ser. 
Continuamos ligadas ao sonho de que se a educação não pode tudo, alguma coisa a educação pode e nós podemos. Em grupos de aprendizagem e parceria, sem medo de falar dos erros, certas de que muitas cabeças pensam melhor que apenas uma, e que se eu ainda não sei, posso aprender. Com colegas, com as crianças, com as famílias. 
Com autores de referência e sobretudo com a reflexão sobre as práticas. Com sentido ético e vigilância critica, para questionar as nossas representações e as rasteirinhas do quotidiano, que nos fazem dar o dito pelo não dito e sermos menos gentis, sensíveis e disponíveis para os meninos e as meninas lá da escola.

Enredámo-nos na pedagogia e falámos de planeamento, ação, plano do dia, escuta da criança, participação, envolvimento, instrumentos, projetos, currículo emergente...tanta coisa, tanta coisa, tendo por mote quem somos, o que fazemos e o que queremos mudar para uma educação cuidadosa e promissora de um melhor presente e um futuro amigo.

Depois regressámos a casa, que temos gente à nossa espera e vida para além da escola, com ela sempre em redor. E fiquei a ver o cai da noite, a apreciar o frio que cheira a natal, a respirar silêncio, a dar descanso às palavras, emoções, significados...que nos tinham enredado pela manha.

E desejei que fosse quase natal, que o menino estivesse pronto para ir para o presépio, que a lareira queimasse a lenha e que a mesa, linda e vermelha, nos reunisse a todos à sua volta, com beijos, arroz doce e rabanadas.  Porque a pedagogia assim pensada, vasculhada e refletida, desgasta e consome energia, perdurando em nós, como o eco num vale. A manha foi de luz, diálogos a muitas vozes e interação permanente, agora quero e procuro o silêncio e o natal.