quarta-feira, 5 de julho de 2017

Síntese

Dois dedos de conversa e o riso. As palavras a destronarem o silêncio, remendando ausências longas, subitamente curtas. E claras e certas, sem ponta de estranheza. A(s) histórias a abrirem caminho, pequenos gestos reconhecidos, as mãos, a face, o jeito de andar e sentar. Os ritmos de sempre na voz, pequenas deambulações, perguntar e responder. Anuir.

Dois dedos de conversa e a vida a desfilar, rebobinar a fita do filme, compor planos principais, incidir nas curtas, traduzir diálogos e iluminar cenas. Apenas as principais, as de hoje, que em alguns momentos, parecem as de sempre. Profissão, filhos, escolhas, projetos.

https://c2.staticflickr.com/4/3228/2939085993_3964344164.jpgDois dedos de conversa e a ternura, bonita de tão legitima e tão antiga. Leve e tranquila, a merecer descanso e contemplação. E alegria, pela vida construída, antes e depois e durante. A vida em fragmentos, num par de anos imenso e ainda assim contínua e rotinada, como se espera. 

Dois dedos de conversa. Memórias, encanto, amizade e confirmação. Do que fomos e somos, sem ponta de briga ou resistência. Apenas a aceitação da passagem do tempo, face às escolhas. Do que soubemos e pudemos fazer, outrora, do que ainda hoje nos compete, entre sabedoria, cabelos brancos e rebeldia. Pouca? talvez.

Dois dedos de conversa. E a vida a revelar-se nos seus contrários. Como é do seu timbre.

Uma parte de mim é todo mundo, outra parte é ninguém. Fundo sem fundo. Uma parte de mim é multidão, outra parte estranheza e solidão. Uma parte de mim, pesa, pondera, outra parte, delira. Uma parte de mim almoça e janta, outra parte se espanta. Uma parte de mim é permanente, outra parte se sabe de repente. Uma parte de mim é só vertigem, outra parte, linguagem. Traduzir uma parte noutra parte, que é uma questão de vida ou morte. Será arte? 
Ferreira Gullar

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