terça-feira, 28 de outubro de 2014

Carta ao meu filho

Faz hoje 23 anos que nasceste. 
Estou sem sono e recordo a noite e a madrugada em que, com o mano ao lado, aguardava o nascer do dia para ir para o hospital. Já estavas atrasado e a tensão alta obrigava a que não facilitássemos. Depois tu, menino doce e tranquilo, amigo da mãe, facilitaste tudo e o parto foi bom. E poético, já escrevi sobre isso. E continuo a escrever-te, como tenho feito nos últimos anos, uma prenda que não custa dinheiro e perdura para sempre. É bom que algumas prendas possam ser duradouras como o amor que sentimos.  Nos tempos que correm, eu sei que sabes que esse é um bem a não perder e a preservar. Tranquiliza-me sentir que valorizas este património de afetos e dedicação que fomos construindo uns com os outros, em família e com os amigos. Foi sempre assim e desde muito cedo.  

Relembro as nossas vindas da escola e as conversas sobre o mundo. Pois, era sobre a escola, os amigos, os professores, mas logo se espraiava para outros lugares e pessoas, para outros mundos, tu a fazeres perguntas, a pensares alto, a confirmar e a confrontar. Relembro o teu rosto. Bonito e pensativo, às vezes zangado, que nunca disfarçaste fúrias ou ideias próprias, marcando a tua posição, autonomia e liberdade. Muito cedo as senti, creio que em alguns dias me assustei, tão pequeno e tão grande, eu ainda a dar-te a mão e tu já a fugires para o outro lado da rua. Tão perto e tão longe, sempre assim andei de volta de ti, tu a dizeres para eu não ter medo porque se te tinha ensinado assim, assim estava certo e nada havia de acontecer de errado. Em alguns dias o meu coração de mãe inquieta perguntava-se se tinha dado o melhor rumo aos teus dias, nos dias em que assim o pude fazer.
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Foste sempre palavroso, pegavas nas palavras e compunhas teses e ideias, vigorosamente, a marcar o teu sentido e a tua visão. Descobri aos poucos que sonhavas o mundo muito para além do que te tinha mostrado, marcando a tua individualidade e a tua autonomia. És hoje absolutamente defensor da liberdade, da verdade, da coerência, da honestidade. Igual a ti próprio, sem dó nem piedade. E eu sorrio de alegria e de respeito por seres quem és. Mas sabes, às vezes ainda me espanto e fico em silêncio, estarrecida, com se diz lá na terra. 

Sabes filho, ser mãe é tão bom, mas muito complexo. Demora-se muito tempo a deixar de sentir os filhos  no colo. Custa largar os cheiros, o calor da pele e a necessidade de abraços. Creio que custa a separação, o cortar do cordão umbilical, que há 23 anos foi rápido, mas depois demora anos para ficar completo, sarado, diria.
É também neste dia que me lembro sempre da avó. Pela alegria que sentia contigo. Por a teres feito uma pessoa mais feliz, ela que dizia que o teu riso era tão alto e descarado que é um disparate.  Não sei a quem o rapaz sai!... Nem eu mãe, mas acho que sai a ele, respondia eu, a encolher os ombros, ainda que dando-lhe um bocado de razão.

Passados que são 23 anos de vires ao mundo, desejo que continues forte, audacioso e lutador, como no primeiro dia da tua vida. O choro de então foi um hino de amor. Que o seja sempre assim pela tua vida fora.

Parabéns, filho.

domingo, 26 de outubro de 2014

Para a Gi

Não vou poder lá estar para a ver e ouvir. Mas sei que vai ser capaz de defender o que observou, pensou e escreveu. Como não?! É educadora de profissão e agora presta-se a apresentar provas de doutoramento, caminho que fez a par e passo, depois de ter trabalhado com crianças e de ter sido professora de futuras educadoras, profissão que ainda mantém e da qual fui colega e companheira durante dez anos. 

Com ela experimentei o sentido verdadeiro do trabalho em equipa, partilhando saberes, dúvidas, entusiasmos e desafios. Lembro-me bem da planificação de aulas, da troca de documentos, da ida e da vinda de livros e textos, da parceria em aulas e de como isso era bom e poderoso. Porque nos completávamos, respeitávamos e apoiávamos com clareza e liberdade de opiniões e perspetivas. Porque demorávamos horas em conversas sobre a infância, resgatando os sonhos e as práticas de uma educação ao serviço de todas as crianças e das equipas pedagógicas. Porque nos perseguia o sonho e a utopia de apoiar a construção de uma profissão que amamos e para a qual, juntas, tentávamos o melhor e o (im)possivel. Lembro-me da simpatia, dos risos, da transparência, da alegria, da dedicação, do otimismo. E da amizade.
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Amanhã sei que estará pronta a discutir tudo o que aprendeu. Com energia, sentido de si e dos outros. Dando como testemunho o trabalho das educadoras e crianças com as quais privou para escrever e pensar a sua tese. Não podendo estar presente, ficarei com os meus meninos e meninas a pensar na enorme sorte que tive em poder ser sua colega e amiga e ter melhorado e aumentado o meu conhecimento e sensibilidade sobre as crianças e a minha profissão, nos anos que com ela convivi.

Boa sorte, Gi. Arrasa!...  

sábado, 25 de outubro de 2014

Sábado pedagógico

Sábado de formação. Hoje os jornais foram comprados a seguir ao almoço e aguardam para serem lidos à noite. Por agora, aproxima-se o fim de tarde e o sol está cor de laranja, dourado, como diz uma canção do outono, que os meninos e meninos lá da escola, às vezes, cantam. Não, não é para fixar ou aprender as estações do ano, sabemos que os meninos não aprendem assim. E como aprendem os meninos e as meninas? Se pensar no que aconteceu esta semana, e ouvindo as falas das crianças no conselho as bonecas não são para os meninos, são para as meninas, direi que as crianças aprendem o que vivem. Quando ouvi, briguei com esta ideia e confrontei-os, problematizei e não deixei cair a conversa, as razões e as opiniões, disse as minhas, alguns surpreenderam-se, outros continuaram a conversar entre si, plenamente convictos da divisão entre masculino e feminino. Confirmei de novo que os meninos e meninas aprendem com as ideias que têm e lhes são transmitidas e vividas no seu espaço familiar e comunitário, no caso, o seu bairro, que tem casas e ruas e fica junto ao rio, mas que se insere no mundo e que no dizer de um menino foi expresso como este é o meu mundo, apontando o lugar, as árvores e as casas. E os meninos e as meninas aprendem no seu mundo e no seu mundo há uma escola. Aprendem também na escola.

Na formação, hoje, ainda que conversássemos sobre os adultos e os processos de aprendizagem, fizemos o necessário isomorfismo para o trabalho com as crianças, sabendo que importa manter a capacidade de nos interrogarmos sobre o modelo utilizado, as práticas desenvolvidas, com a coragem de não ter medo de ainda não saber o que é suposto já estar dominado, partilhando com outros, dúvidas e anseios. Discutimos que aprendemos a ser professores em coletivo, com os desafios e confrontos que nos fazem, em comunidades de aprendizagem, para as quais mobilizamos os nossos saberes e a liberdade para  exprimir e dizer o que nos inquieta. A ideia de que em cooperação, podemos enriquecer o nosso património de convicções, encontrando caminhos alternativos para ensinar e aprender. Olhar de outra maneira o lugar dos alunos e dos professores na construção dos saberes. Ser capaz de os pensar com honestidade, ética e compromisso. E iluminar com racionalidade, inteligência e coragem a nossa tarefa na construção da escola.  

https://peregrinacultural.files.wordpress.com/2011/10/ricardo-ferraribrincadeiras-de-crianc3a7a-ost120-x-190.jpgE então, o que têm as leituras estereotipadas das crianças a ver com a formação da manhã? Têm tudo, quanto a mim. De regresso a casa, pensava em como é bom ter gente que nos desafia a ver para além do instituído, nós que apesar de tudo, estamos certas de que as escolas são um lugar instituinte, construídas pelas pessoas que nelas vivem e sobretudo, sem ideias gueto ou preconcebidas do que é ensinar e aprender. Mas esta perceção que temos sobre nós, enquanto inovadores, é abalada muitos dias pelas caracteristicas dos contextos e pelas representações sobre os mesmos. Sobretudo quando os contextos encerram em si problemáticas ou certas denominações. Os territórios TEIP, por exemplo, que para além da(s) sua(s) realidade(s), produzem um conjunto de representações profundamente enraizadas nas pessoas, professores, alunos, comunidade. Olhamos para os TEIP e fechamo-nos neles, submersos pelas dificuldades e pelos problemas. E à força de tanto partir de diagnósticos negativos, baixamos as expectativas, aumentamos o zoom sobre as feridas e não há maneira de ver o corpo saudável. Guiamo-nos pelo que falta, por referência a uma tabela padrão, nos saberes, atitudes e competências dos nossos meninos e meninas. Coisa perigosa esta, de nos abandonarmos às nossas representações mais profundas. E às dos outros, que à força de tanto as proclamar, quase as tornam verdadeiras.

Imunes a isto? Nem sempre, o poder dos contextos é fortíssimo. Tal como a ideia de algumas das crianças da sala de que as bonecas não são para os meninos são para as meninas, também nós temos ideias assim, preconcebidas, estranhamente preconceituosas, que nos fazem tomar por certo e determinante, o que deve ser relativo, temporário e transformador. Como dizia o meu professor Rui Canário, passar dos problemas às soluções.

Para mudar? Persistência e sentidos alerta. E um grupo de companheiros de profissão que nos faça pensar e construir as alternativas contra o sistema vigente e as ideias imobilistas. E a manter-nos vigilantes e ativos. Com as crianças? Persistência e sentidos alerta. E um grupo de pares e uma equipa capaz de fomentar pensamentos divergentes, práticas diferenciadas, propostas onde carrinhos e bonecas se misturem e desafiem as crianças a fazerem diferente e assim poderem baralhar o destino traçado de serem homens e mulheres confinados a papéis  socialmente determinados.

Eu disse que isto tinha tudo a ver umas coisas com as outras. Só não sei se fui suficientemente clara. O meu obrigada a quem dinamizou hoje a formação pela manhã (regional do MEM de Lisboa) e permitiu que eu escrevesse este texto, ainda que eventualmente confuso...a escrita tem destas coisas, porque mobiliza o que ouvimos, pensamos e ligamos entre si. E esta semana vi muita gente a olhar sem olhos de ver as minhas crianças...

sexta-feira, 17 de outubro de 2014

Inquietações

Alma carregada nesta sexta-feira. Um cansaço lento, um desconforto leve, mas sentido. Um não sei quê de inquietação, como se fosse necessário passar um apagador pelo quadro e começar de novo as intenções e as certezas. Escrever com maiúsculas, letras grandes, capazes de nos levarem, só pelo seu tamanho a espantos bons e a promessas credíveis, porque o futuro se joga todos os dias e os dias não se deitam fora. Os dias requerem almas confiantes e corpos ousados, capazes de correr nas estradas mais íngremes do tempo, esse elemento preciso que ligado ao espaço constitui o nosso chão e a nossa esteira para caminhos e descansos.  Senti-lo como aliado, ele que tantas vezes joga às escondidas, ora perto ora distante e nós sem jeito de compor as horas umas a seguir às outras. Não temos esse jeito, mas facilmente criamos noites longas e estranhas, foge o sono e começamos a contar ovelhas, os pensamentos à frente da realidade, à procura de outras paragens e desafios. Os sonhos. Os que trazemos na nossa mochila de gente crescida, cheia de coisas de gente pequena. Da nossa infância e da(s) infância(s) dos nossos meninos. Os sonhos assim baralham-se, ficam apertados e confundidos, já não sabem como vir à luz do dia e tornarem-se uma certeza boa. 

http://rlv.zcache.com/rainbow_question_marks_print-re608b0fd336b482892ad32f9fcb18f5c_wvm_8byvr_512.jpgEstamos assim nesta sexta-feira, dia por excelência de viver preguiças, que hoje fugiram para dar lugar a pequenas inquietações. E dúvidas.

E o que tem isto a ver com pedagogia? Tudo e nada, pois, que as palavras quando nos assolam, são furtivas e mesteriosas, nós a querer contê-las e a enredá-las em molduras simples e elas, matreiras a escapulirem-se para terrenos movediços. Sem pedirem licença. E desnudam-nos sem pudor e lá ficamos nós frente às nossas fraquezas. 

E por isso é que hoje a pedagogia se escondeu e veio mascarada destas ideias. Hoje estou incapaz de escrever sobre pedagogia. Deixei tudo de mim na escola e mais não quero dizer. Nem sei, que nos ultimos dois dias houve muito ruído, pedidos de colo, choro e meninos a baterem-se. Também a gostarem-se e a interagir, mas isso por agora, não me consola. Estou cheia de meias palavras, porque me faltam as palavras certas para acertar nos processos vividos. 

Vou descansar e desculpabilizar-me de não ter feito melhor. Porque é que sonhamos repetidamente com grupos de crianças atentas, felizes, cordatas, amigas e tudo assim, bonito e gradual e quase perfeito? porque não somos mais pacientes, resistentes e realmente compreensiveis com os caminhos e os atalhos do crescimento na infância?   

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Equipa(s) e...cantigas

Estava na sala e ouvi a voz da T. cantar uma música suave, linda, conhecida. Parei e vim cá fora e os meninos estavam todos sentados, a T. com um ao colo, rostos calmos e olhos abertos, a trautear os sons, a tentar acompanhar e aprender a letra. As palavras e a música saíam serenas e longínquas, assim as senti, assim ecoaram no meu coração. 
Sentei-me, pus a mão por cima dos ombros da T. e comecei também a cantar. Senti-me pequena e contente, senti o cheiro do mar, as ondas da praia da Torreira, as vozes da minha infância, as mulheres no lavadouro a bater as mantas na pedra, com as suas mãos de cuidar da vida e do mundo. Um mundo de trabalho entre a casa e o campo, um mundo de quintais e árvores e milho e uvas neste tempo de outono. 

Juro que fiquei tão contente e agradecida, que cantámos várias vezes a canção e os meninos e meninas gostaram e sorriram com a minha alegria e partilha das memórias. A T. também sorriu pelo meu encanto, ao nos ter dado uma cantiga que eu já quase esquecera. E por me fazer voltar ao meu tempo de meninice. Foi bom.
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Andei com a cantiga todo o dia na boca e a pensar que as equipas, as que assim podem ser consideradas, se reforçam e se alimentam pela  complementaridade de saberes, que muitas vezes são um bálsamo para os dias mais difíceis de ser educadora e auxiliar. 
E isso é muito importante para um trabalho partilhado. Creio que se chama sensibilidade e sintonia. E os meninos e meninas sentem isso. 

E aqui fica a cantiga, com cheiro a mar, a amor e a liberdade.

Já o vento me leva ao ar
Coradinha da cor da romã
Pé aqui..pé ali...pé além
Dá-me um abraço meu lindo bem

Oh que praias tão lindas tão belas
Onde eu ia passear
Sentadinha na areia sózinha
Apanhar conchinhas do mar

domingo, 12 de outubro de 2014

Tomar a palavra e um lugar

A M. entrou na sala, despediu-se da mãe e deixou-se ficar de pé, em silêncio, a olhar à sua volta. Já tínhamos começado a sentarmo-nos ao redor da mesa grande, com os mais novos ainda de pé, a falar ou dar abraços, alguns de chupeta na boca, os mais velhos impacientes por falarem, outros a aguardar para mostrar objetos trazidos de casa. Como sempre, havia um burburinho no ar, conversas paralelas, bibes por vestir. Chamei-a várias vezes para a mesa e ela continuou de pé, em silêncio. Quando enfim serenámos e me sentei à mesa para ouvir o que tinham para dizer, virei-me para ela e perguntei-lhe se não se queria sentar, tendo ela dito que não podia, porque me falta o mimo. Sem entender a que se referia perguntei-lhe o que era o mimo, se era um boneco, se se tinha esquecido dele em casa, se...
Ficou a olhar para mim muita séria e depois respondeu, pausadamente
- Então, é aquilo que me faz falta e que tenho que ter...que me deixa bem e feliz...é o mimo...
Surpreendida, entendi do que falava e perguntei-lhe
- E achas que isso se resolve com um bocadinho do meu colo,  aí em dois minutos?
- Sim, Manela, dois ou três...
Sentou-se na minha perna, abracei-a com um dos braços e com o outro iniciei a escrita de uma novidade de um menino. Quando terminei, perguntei-lhe se já estava bem e feliz, ela respondeu que sim e bem-disposta, foi sentar-se. E assim ficou até ao fim da reunião.

Da parte da tarde, na leitura da coluna do não gostámos (que nesta semana ficou completamente cheia de escritos dos meninos e meninas, confirmando que o grupo está saudável e cresce a olhos vistos, ainda que nem sempre da forma mais pacifica...) o S. disse eu  escrevi não gostei que o C. me tivesse batido. Depois de explicar o que aconteceu, foi dada a palavra ao C., que confirmou que tinha batido, porque me chamaram mama go(r)da e eu fiquei zangado. Sem entender a expressão, pedi que clarificasse o que era isso e ele apontou para o seu corpo, encolhendo os ombros. De imediato percebi a alusão ao seu aspeto mais gordinho e como isso o tinha incomodado. As duas crianças falaram e depois outras também, tendo eu ainda tomado a palavra para falar um pouco sobre as diferenças das pessoas e o respeito a ter por cada uma delas. Tenho a certeza que fui relativamente assertiva, talvez um pouco até intrusiva, mas não consegui deixar de o fazer, atendendo ao sentimento de tristeza e incómodo que vi na cara e no corpo do C.  No fim de toda a discussão e troca de ideias, o C., o menino que tinha batido, pediu a palavra e disse que ainda queria dizer mais uma coisa. E falou

https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjTog9OxBhSwBVNnB1hXIR-pZWbWqYTavkI0Tkp5raXOrcIyGsbPP1RsRK-dM806lT2Leb8CFzkjOEMOg5U9mq45KDXuVuCtmz-8LVQ8Sst4KIR2oaUYI3mZJeO3hDg2sApJohtYTzB608/s1600/roda.png- Eu quero brincar com eles e eles afastam-se. Eu chamo por eles, eu tento entrar na brincadeira e eles não deixam. E eu ainda preciso de os conhecer. E preciso de ter tempo para os conhecer. Se não, não consigo ser amigo deles e eu quero.

Pouco depois terminámos a nossa reunião, todos muito cansados, que as discussões tinham sido abundantes, prolongadas e um tanto ou quanto agitadas. Em mim, um sentimento de estar cheia e profundamente surpreendida pela capacidade de exposição do C. e da sua consciência quanto à necessidade de ter tempo para fazer amizade(s). E da sua impaciência pelas tentativas de aproximação e a recusa dos outros, que estando pelo segundo ano na escola, já se entendem, conhecem-se e interagem.
O que o C. reclamou foi por uma oportunidade para mostrar-se e interagir. O que o C. já sabe é que sem tempo e lugar não pode integrar-se e estabelecer laços de afeto com outros.

E foi assim nesta sexta-feira, um dia grande com bom início e bom final. Em conselho, duas crianças que sabem expressar as suas necessidades e reivindicar os seus direitos. A ter colo e mimo no caso da M., a ser incluído e a fazer novas amizades, no caso do Cris. E a afirmar que se não lhe dão tempo e oportunidade, o conhecimento não vai acontecer e a amizade também não. E esse é um desejo que sente e uma necessidade que tem.

Quando estou cansada e quase desistente de promover estes espaços e formas de discussão e construção da democracia - pela imensidão de meninos e meninas, as dificuldades de atenção e envolvimento, a morosidade das aprendizagens, a estranheza de outros perante as nossas práticas - estas situações confirmam a importância de as manter, persistindo no caminho que sendo menos fácil, é todavia o mais frutuoso e poderoso no que respeita à relação das crianças consigo próprias, com os outros e com o mundo que as rodeia. Para apoio à construção da identidade de cada um, de espaços de cidadania, tolerância e inclusão. Desde o inicio, com ou sem chupeta.

quarta-feira, 8 de outubro de 2014

Redação: eu e o meu irmão

O meu irmão é mais velho do que eu e faz hoje anos. O meu irmão sempre foi mais velho do que eu e isso dava-me muita alegria e às vezes algumas zangas, porque ele podia fazer coisas que eu não podia. Ainda por cima era rapaz, o que complicava um pouco mais esta questão de ele sim e eu não. O meu irmão ensinava-me muitas coisas e se não as dizia, eu que era curisosa e atenta, descobria. Por isso o meu irmão ensinava-me a ver mais longe, a querer as estrelas, os rios e as paisagens mais distantes, quando eu ainda e apenas podia andar na rua e no quintal. Ele vinha ter comigo, com olhos de sonhar mundos e eu ficava a saber que se podiam ter sonhos e que os homens e as mulheres eram fortes e corajosos também por isso.  

O meu irmão não falava muito, mas tinha uns olhos serenos e amigos que me ajudavam a adormecer nas noites de inverno, ainda que ele não acordasse com trovoadas fortes ou um tremor de terra mesmo a sério. Mesmo assim, o meu irmão dava-me calma ao coração e ajudava-me a acreditar no poder do amor, esse laço invisível que se constrói dentro da barriga da mesma  mãe e se fortalece cá fora, na mesma casa, na mesma familia e com os mesmos avós. O meu irmão fazia comigo o presépio no natal e procurava com cuidado os patinhos de barro para pôr no espelho que era um lago. Quando acabava de me ajudar, era logo natal, mesmo que eu não visse o menino jesus nem tivesse muitas predas no sapatinho. 

http://www.xiaoqingxinba.com/wp-content/uploads/2014/09/12822089774298.jpgO meu irmão, como era mais velho, tinha livros de gente crescida, proibidos, que eu lia às escondidas e foi assim que muito cedo amei a liberdade, a democracia, conheci os erros mais feios dos homens e as as suas maiores dádivas. O meu irmão lia-me textos em francês e ensinava-me algumas palavras dessa lingua, na salinha da nossa casa. Foi nesse espaço pequeno que comecei a querer rasgar as cortinas das janelas para correr o mundo, viver em Paris e se possivel, escrever livros.

Hoje o meu irmão ensina-me menos coisas, porque já somos os dois crescidos e agora já não interessa tanto a diferença de idades. Eu já posso fazer quase todas as coisas e ser mulher ou homem já não tem assim tanta importância. Mas o meu irmão continua a serenar-me o coração, porque o meu irmão é um homem de afetos grandes e coração de menino, apesar de ser já não ser pequeno. Tem muitas coisas que tenho pena que já não façamos os dois, mas ganhámos uma relação de igualdade e fraternidade que tem o tempo e o sabor da idade que temos. 
É por isso é que o meu irmão é muito importante para mim e que eu gosto muito dele. E ele gosta muito de mim. Não dizemos isto muitas vezes, mas é uma grande verdade. No dia em que faz anos, decidi dar-lhe esta redação. Hoje não estou capaz de escrever uma prosa poética.
Parabéns, mano.  
           

domingo, 5 de outubro de 2014

Dia do professor

Andar com eles ao colo, procurar-lhes as razões e os medos, dar-lhes o leite e a bolacha, planearmos projetos e pinturas, cantarmos canções e lenga-lengas, rebolar no chão e no jardim, brincar ao lobo mau no recreio, limpar lágrimas e acolher risos, fazermos silêncio e ouvirmos o vento, descobrir letras e palavras doces, dizermos não e talvez, espera agora que ainda não é tempo, ensinar-lhes as cores e o azul do céu. E o sonho. E a liberdade. E a alegria. E a democracia. E o sentido de ser unico e importante e urgente. Mas não só, em conjunto com outros, em grupos de muitos meninos e meninas que inventam os dias na escola.

Tudo isto fazemos e mais mil coisas, num quotidiano de compromisso e entrega, cansaço e entusiamo, ponderação e sussuro(s). E vozes altas. Com equipas que falam e se desdobram, com famílias que opinam e observam, participam e recusam, estão presentes e ausentes.

http://www.piuma.es.gov.br/upload/img/%7BDEBEAAD2-82EA-6ABD-6D81-3EEBA571BCAA%7D_700X448.jpgTudo isto fazemos em muitos sítios, espalhados pelo mundo, rodeados de cultura(s), hábitos, riscos, encantos e desencantos. Tudo isto fazemos e muito alvejamos, certos de estarmos no centro da vida a crescer no presente e para o futuro. Que queremos melhor para nós e para cada um dos meninos e meninas que connosco aprendem e amam e desejam.

Neste dia do professor, aqui estamos a dizer que vale a pena. E que é tempo de dar a dignidade justa e certa à profissão de semeadores de terras virgens e férteis de saber(es), ser(es) e saber(es) fazer (es). Convoquemos pois os atores desta missão para tomarem a vez e a voz e por ela anunciarem os seus propósitos e os seus direitos.

Bom dia do professor.
  

sábado, 4 de outubro de 2014

Vale a pena...apesar do cansaço

Sábado cheio. De manha zanguei-me com o compromisso firmado há já algum tempo e com esta facilidade com que aceito os desafios, pensando que tudo se faz. E não nem tudo se faz, porque somos finitos, como dizia o meu filho quando era pequeno, querendo dizer que estava terminado, fechado. Ou faz-se mas com custos e esforço, coisa que já não vai de bem com a nossa idade. Há quem diga que não, que estamos ainda jovens, mas sabemos todos que essa coisa da juventude há muito que passou. Estamos seniores. O que não é propriamente a mesma coisa. 
Assim ía eu a ruminar cansaços enquanto me dirigia a Setúbal onde me esperava um grupo de 26 auxiliares para um dia de formação. Lá nos acomodámos na sala, lá montámos o estaminé, lá nos preparámos para ouvir e falar. Ao princípio a medir-nos mutuamente, que esta coisa da formação e da interação não é pera doce, nem jogo ganho à partida. É comunicação, investimento e adesão, trilogia incompleta, mas ainda assim forte, para um suposto dia de descanso. E refletir é tudo menos descansar. É mobilizar para o meio da mesa, para partilha, as nossas práticas, as nossas representações, as nossas experiências. Expormo-nos, coisa que leva tempo e exige confiança, 

https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjPUth891ZZ_4EjgA5o4wgv9cq2_Ry9_EUcVrZsIRu4lZ9D3fjXanIj3wSbWJCDqojqwy44yYwcJRg_KwnQw6oeGNkHQ2EW9y_3EHASQYU7lULbwQrC1-KOXtmvD3Kaq4aCFvPyRD9_zrnx/s400/ciranda.jpgE foi isto que fizemos, passado a primeira meia hora de audição atenta e um jogo de apresentação. Dissemos o que gostávamos mais e menos na profissão, resistindo à ideia preconcebida de que gostamos de tudo. E de todas as crianças da mesma forma. Não é verdade, sabemos todos disso e se nos consciencializarmos do que apreciamos menos, podemos, com mais verdade, apetrecharmo-nos dos instrumentos necessários para reduzir o lado menos positivo da nossa intervenção. Libertamos culpas e falamos de possiveis e de gente de carne e osso.

Depois...depois foi bom convocar a minha experiência, a de quem estava presente, e também de outros que pensam e estudam o estado da arte. Com parcimónia, que a maior fatia de autores deve ser a de quem se forma, para tomar a palavra e falar. Dando voz e vez à sua experiência, em confronto com a dos outros. E conversámos sobre funções e competências dos auxiliares, problemas e dificuldades com as crianças, as equipas e as famílias, da brincadeira como a atividade mais séria da infância, de conflitos e resolução dos mesmos e do outono e do pouco tempo para se ouvir as crianças. E muito mais e muito menos. E gargalhadas, que também é preciso.

De regresso a casa, já não ruminei zangas. Apenas sentia o cansaço profundo dos diálogos, da gestão do tempo e das falas, da mobilização dos exemplos, da tentativa de explicitação do que me devolviam.  De regresso a casa, revia o espanto dos rostos, quando por qualquer motivo, abria a porta da pedagogia e escancarava os problemas. As práticas e as suas rasteirinhas, chamando as coisas pelos nomes, sem medo, envolvendo-me como educadora, expondo-me com tudo o que tinha e sei. E sou.

De regresso a casa pensei que ser sénior ainda não me retirou a energia para me entusiasmar, pensar e projetar. Nem o prazer de fazer isso com outros, descobrindo o que em cada um é sol e sonho e rebeldia. É por isso que aceito estes desafios, ainda que comece a manha a ruminar zangas comigo própria e termine a tarde cheia de um cansaço profundo, mas gostoso. 
Espero que tenha sido assim também para os que comigo estiveram. O único senão é amanha ser domingo e o fim-de-semana ficar bem mais curto. Não é coisa pouca, nomeadamente para uma sénior.