domingo, 31 de agosto de 2014

Um bom começo

Aceitemos que as férias acabaram. Arrumamos os sacos da praia, sacudimos o resto de areia, colocamos o despertador no sítio do costume, limpamos a secretária, preparamos a agenda. Estamos no regresso ao trabalho, no caso, no regresso às aulas. Tal como as crianças. E tal como as crianças move-nos uma certa nostalgia, misturada com contentamento. Deixar um tempo de nada fazer para começar um tempo cheio. 

E agora que as crianças estão quase a bater à porta, é bom que a possamos abrir com um sorriso pronto e um coração aberto, para bem acolher. Vão chegar de mansinho, com lágrimas ou grandes corridas, algumas com medo, outras destemidas, a rir ou a esconder a cara, no meio da sala ou encostadas à saia da mãe...de mil formas e mil entradas vão chegar, coração aos saltos, expectantes e curiosas, precisam de conhecer, confiar e aprender a gostar dos lugares e das pessoas que com elas vão viver dias e dias de aventuras boas e desafiadoras. Assim esperam. Assim queremos nós também.

E quando abrirmos a porta, o que importa oferecer e construir

http://www.revistadigital.com.br/wp-content/uploads/2012/04/FAMLIA1.jpg- um espaço agradável e pleno de coisas e tempo para explorar e brincar. Sem pressas. A pedagogia do caracol, a vagareza do tempo, como condição para aprender e ser com os outros.
- um ambiente afetivo e culturalmente rico. Inclusivo. Lugar para todos e todos com um lugar, reconhecendo o direito à diferença e à identidade pessoal e social. A sensibilidade ao outro, pequeno ou grande.
- o primado da expressão, fala, canto, desenho, pintura...diálogos profundos e verdadeiros, com palavras e ou gestos, produções com tinta, lápis, em papel, no quadro, na mesa. A criatividade como unica forma de exprimir e projetar quem somos e o que sonhamos.
- atenção e disponibilidade, colo e olhares, mãos e abraços...também zangas, talvez, a certeza que aprender a ser entre outros, não é genético nem natural. Exige compromissos, escuta, observação, aprender a colocarmo-nos do ponto de vista do outro, coisa dificil e nunca totalmente acabada.
- uma equipa coesa, critica e comunicativa, capacidade de envolver todos nesta jornada em companhia.Ser capaz de acreditar coletivamente na educação como ferramenta de construir presentes e futuros plenos. Para todos. Crianças, profissionais, familias.

E quando abrirmos a porta, estaremos preparadas para dar tanto? e muito mais que nem foi ainda aqui dito? 
Se não estamos preparadas, preparemo-nos, pois. Busquemos o descanso que nos envolve ainda, com cheiro a mar e algas; convoquemos o tempo solto que nos baila no corpo, a leveza das paisagens que percorremos neste agosto e guardamos nos olhos; a liberdade que nos assolou nas noites quentes deste verão que está a terminar. 
E cheias de descanso e otimismo, arregacemos as mangas, para bem acolher...
Porque um bom começo serve para todo o ano...


terça-feira, 26 de agosto de 2014

Contrário(s)

Era ponderada. Quando assim era, ficava de bem com as horas alinhadas do relógio e todas as rotinas que se seguiam, o conforto da janela aberta antes de sair de casa, o cheiro do café na mesma mesa de todos os dias. E o teto com traves de madeira escura, a lembrar-lhe a casa segura dos verões da infância. Segura e bela. Antiga.

Era ponderada, pelo menos assim se sentia, quando apreciava sábados previstos, o jornal e os primeiros raios de sol da manhã, a chegada do outono, folhas no chão e um casaco quente, arrumar a casa e preparar os dias, depois mais tarde, o natal, as bolas de sempre e a árvore, a casa vestida de vermelho e branco, a alegria dos sapatinhos na chaminé, retardando a solidão da lonjura de ser menina. 

Era ponderada, queria as tradições e os costumes, aninhar-se no riso dos filhos e das crianças, salas cheias de conversas longas e prováveis, as que confirmam que estamos no sitio que amamos e que nos devolvem a tranquilidade dos nomes que conhecemos e das histórias semeadas, com cuidado, no jardim de nosso tempo.

http://empreendedorismorosa.com.br/wp-content/uploads/2014/06/tempo.jpgContudo, nem sempre era assim. Em dias pouco prováveis, inquietava-se com a previsibilidade do tempo e dos sonhos, queria abrir brechas onde as paredes eram de betão e aço, rasgar o horizonte e alcançar o que havia para além da ultima linha do mar. Nesses dias, andava vergada e de olhos no chão, procurava lanças de ferir arquitetos pobres, esses que edificam prisões em vez de casas de portas abertas. 

Nesses dias, os caminhos de terra sabiam-lhe a condenação e fechavam-lhe a procura de outros continentes, debatia-se com força pela liberdade sem fronteiras, sabia de outros traçados em mapas de investigar novos mundos. Nesses dias, nada nem ninguém a convenciam da beleza da vida ponderada, debatia-se contra o equilibrio, sabia-o portador de mofo e cristalização dos sentidos e desejos mais belos e invulgares. Nesses dias, não apreciava o cheiro do café, nem retocava fotografias antigas em prateleiras de retratar a vida. Porque outra vida reclamava, num desejo feroz de abolir destinos.

Nesses dias, assim se gostava, assim se queria e se lamentava. Inexplicavelmente?       

terça-feira, 19 de agosto de 2014

Um mar de livros

Deixei o local onde estive e regressei a casa. Deixei o meu mar e hoje inundei-me de outro. Um mar de livros, muitos, com sons de água e marés de palavras, tenho-os por aqui à mão, tantos e tão bonitos, preciosos, mais antigos ou mais recentes, a sairem das estantes, porque é preciso dar-lhes uma volta, limpá-los do pó, (re)agrupá-los, mudá-los de lugar, arranjar novos poisos.

http://perlbal.hi-pi.com/blog-images/673579/gd/1328204630/Lista-de-livros-do-vestibular.jpgSim, são muitos. Mesmo muitos. Fomos-nos apaixonando por eles, por gosto ou necessidade e ei-los agora um pouco por toda a parte, nesta nossa casa que é grande, mas fica pequena com tantos livros. Mas gostamos.
São livros do nosso contentamento e viver, acompanham-nos desde a juventude, estenderam-se por muitos temas, profissão, infância, maternidade, política, sociedade, mundo, poesia, arte, fotografia. Nacionais e estrangeiros, clássicos e vanguardistas, pequenos e grandes. Muitos. E bons.
São livros que aprendemos a amar, porque nos revelaram mundos novos e confirmaram crenças antigas, aquelas que estão coladas na nossa pele de pessoas vivas na terra. Com paixão, sonhos e às vezes desespero, ainda que manso. São livros que ajudaram a resistir, que construiram saberes, anunciaram novas madrugadas e combateram o medo de arriscar. E deram brilho aos olhos, beleza ao entardecer, palavras certas aos pensamentos mais estranhos. E palavras ao silêncio e silêncio às palavras.

São muitos, sim. Mesmo muitos. Mas sempre que temos a tentação de mandar alguns para outro lugar, vemos-lhes as raízes a alastrar pelas escadas, do sótão até à sala, da sala até ao jardim e ficamos incapazes de tamanha imprudência, porque os livros são a nossa casa.
Ainda bem, não podemos ficar sem guarida, nem deitar fora a nossa história e todos os nossos enredos. Não podemos deitar fora tanto mar de palavras sábias e amigas.
Como iriamos depois viver o verão e todas as outras estações que ainda estão para vir?


domingo, 17 de agosto de 2014

Estrela do mar

Olhos claros, cabelos louros com caracóis e ar levemente sério, terá cinco, seis anos, brinca na areia e corre junto da água, rindo e saltando. Pára muitas vezes para olhar o mar, em silêncio, ou palmilha a areia a trautear uma canção, em jeito distraído, embrulhada na toalha.

Nas suas deambulações viu a nossa estrela do mar e aproximou-se, curiosa. O rosto adocicou, fez um ar espantado e baixou-se, perguntando se podia ver. Dissemos que sim e ela mirou-a, indagando se estava viva e comentando a sua beleza. Em dada altura, disse é frágil, tem que se ter cuidado, se não partem-se alguns dos seus bicos. Explicámos como a iríamos transportar, com cuidado e atenção. Depois disse-lhe ainda que a ia levar para mostrar aos meus meninos da escola, para eles verem e conhecerem uma estrela do mar. Uma jovem da sua familia, que se tinha aproximado, disse que isso era giro, se não as crianças apenas conhecem dos livros e isso é menos interessante. A menina com ar muito compenetrado exclamou ah eu não!... eu conheço mesmo muitas estrelas do mar. A sério.

https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjsoSujfbCHvIB_w_4toHF9YeCp9xnnArlnC_kDH5bmuS-b-hWhMfK0OwTMHcmi5ecqVcnEJ9PlKqX4f3YUxJDI3Q1sgVUX7qU0ZyjJm6guRiPR5MqVlP_imAXAiXUs7Ioit8r_1EDJAoS4/s640/post+1b.jpgO resto da manha passou-a a tomar banho, a arbitrar um jogo entre adultos, a participar em corridas para depois mergulhar, a passear sozinha com canções em surdina... e visitas à estrela do mar. Em silêncio. Numa das vezes falou e disse, olhando-nos vim ver se estava mais frágil. Não sei...Espero que não. E foi contar à familia, que a ouviu interessada. 

Eu também espero. Quero mesmo levar esta surpresa para os meninos e as meninas da minha sala. Fazer-lhes uma surpresa e falar-lhes das férias. E contar-lhes esta história da menina curiosa, princesa da sua vida, autónoma e segura, com gente à volta que lhe concede tempo e liberdade e participação nos eventos de férias, em pé de igualdade com os crescidos. 

Não sei se direi esta parte, talvez invente outros enredos, a constatação fica para mim, para que não me esqueça de como a infância pode e deve ser um tempo de corpo inteiro, respeitado e valorizado. 
Em todo o tempo e lugar(es). Em férias e na praia também.


sábado, 16 de agosto de 2014

Submissão

https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj_E9n0Mpcd_NMmNdPz4Oc8OxFSsYjxzX1qFtW7N3UVP9hOICoycZI6nwXSquyZ-S3k2ZVHqvyg0gS6O7UgUMGq-ILQncCFTGniiLbFREcmFSGt3IVn-ZWBZZv77UcjhYhRKuiGnvwXGRBz/s320/sombras+3.jpgEm silêncio, vigiava-lhe o sono nas madrugadas, as inquietações e os desejos, o cabelo grande e as calças curtas. Discreta, espreitava pelo postigo o seu regresso e com o tempo aprendeu a não esperar que voltasse. Às vezes surpreendia-se com um regresso breve em dias não contados, quando as noites pareciam feitas para aceitar derrotas. Amava a sua eloquência, conduta e os aromas novos de outros mundos, escritos nos seus olhos de procurar estrelas. 

Queria partir junto, mas a razão contrariava cada tentativa, amordaçando a coragem e a ousadia. Ficava-se pela penumbra e sombra, nunca se atreveu a gritar alto o querer do amor. Foi assim o tempo todo e foi assim que ficou refém de cheiros e promessas. 
Nunca se cansou deste papel, não lhe ouviram lamentos ou desabafos em tardes longas de tédio. Muito mais tarde, uma saudade longinqua ainda vinha acordar lembranças desfocadas de uma vida oferecida. Sem retorno. 

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

O mar

Gostava de ser capaz de escrever sobre a beleza do mar. Este mar que visito todos os anos e esta água que me refresca o corpo e o pensamento, dos cansaços fartos e escondidos de outras estações do ano, em tempo de trabalho. 

Gostava de descobrir as palavras mais belas que traduzissem com exuberância, ainda que ponderada, a transparência da água, a sua quietude, lonjura, tonalidades e cadência, movimentos e som. E aflorassem o voo das gaivotas, com a mesma serenidade que as atinge quando descansam com leveza na sua superfície.

http://downloads.open4group.com/images/media_gaivota-praia-mar-5c5a6.jpgGostava de ser capaz de falar deste gosto e deste deslumbramento que apazigua mágoas e lamentos, e me devolve o sentido do silêncio, esse que embala o sono dos meninos em noites de luar e redime as lutas de guerreiros em tempos de paz. 

Gostava de criar outros dialetos e outras grafias, em forma de concha, buzio, alga, cavalo marinho, estrela-do-mar, duna e areia escaldante. E uma música, suave e melodiosa, para traduzir o som do mar e o seu bater leve e constante, na areia molhada e nas pedras que rolam, dóceis, entre a espuma.

Gostava de saber escrever textos poéticos sobre a beleza que o mar me dá, de tanto o olhar. De lhe retribuir o encanto, esculpindo palavras em imagens límpidas, frescas, em tons de azul e verde-mar. Com gaivotas e bocados de algas. E fios de água a correr. E marcas de pés na areia. E crianças com a pele morena e riso alegre. E mulheres a partilharem amores felizes. E jovens a beijarem-se, com os corpos molhados. E os sons da água contra as rochas. E o canto das gaivotas. E a lonjura do horizonte. E a cor dourada da areia, em tardes longas de calor bom. 

Gostava de ser capaz de escrever sobre a beleza do mar. 
 

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Namoro (con)sentido

Pega nas palavras e fala corrido, numa cantilena meia adormecida e embalada por gestos vagos, discretos, um voo de uma ave ou o desfazer lento de uma onda, algas abandonadas na areia. Assim, levemente em riso e segredo, em comunhão desprendida.

Pega nas palavras e faz delas companhia de dias inteiros, aprisionando o presente para que faça raíz e caule e deixe marca nas areias movediças do seu tempo. Por isso, relembra lugares e pessoas e atribui-lhes adjetivos e encantos, vestigios pequenos, visualizados à lupa dos seus amores, em cenários revistos e vezes sem conta mencionados. E assim perpétuados, numa espécie de saudade projetada para o futuro.

Pega nas palavras e dá-lhes soltura, porque é solta e livre na vida, mulher de muitas ruas e poucas paragens, a palavra de ordem tem muitos idiomas, todos no mesmo sentido. Setas disparadas em arco para o sol do entardecer, sem alvo predestinado. A lonjura é a sua quimera mais que perfeita.

http://api.ning.com/files/2K8CPBNkXwmTFQEAm2Rw-lSlHFCPE1BXr28Jp3zD*usPnnU3MYYHFHnAiT8YS0TVZZ-segSWROZqIdRnKs1bP4aIIaJ05aEw/presentesde1anodenamoropresentesparaonamorado.jpgPega nas palavras e faz-lhes a corte, qual menina casadoura à espera do seu amado, o que virá revelar mistérios em dias de nevoeiro cerrado. Pega nas palavras e ilumina lugares escuros, torna claro para si as clareiras raras de florestas densas. Quase sem se ouvir, quase em surdina.
Porque é assim que fala, para dentro e em monólogo, parecendo espantar pardais em dia de colheita farta. Mas não abandona o lavar dos cestos, sabe que até ao fim é vindima e ama a cor forte do vinho para celebrar a festa a vida e a alegria. Com muitas palavras.

Por isso, nunca as abandona e namora com elas num amasso permanente. E elas a isso se prestam, languidas e disponíveis, entregues a esta sorte. Não parece haver divórcio à vista, assim se consta. E ainda bem.

terça-feira, 12 de agosto de 2014

Saudades, em tempo lento

Sol, muito sol e um mar imenso. Pleno, visto aqui da varanda, em forma de meia-lua. Já cá estou e já não pergunto, como fazia o meu filho mais velho, quando era pequenino "mãe, quando chegamos às férias?" cansado das viagens de carro. Um sorriso de satisfação e alegria, enormes corridas quando chegávamos. Eu não corro, movo-me mais ao sabor de um tempo lento, respiro e descanso. Já não pergunto pelas férias. Ei-las.

Mas faço perguntas, de mim para mim. "O mar envelhece?", perguntava hoje de manhã, na praia, a mesma que deixei há um ano, e vou deixar daqui a uma semana, como acontece todos os anos. Olhava a espuma, admirava o azul transparente e por mais que observasse, não via rugas nem qualquer manifestação  atipica que fizesse acreditar que o mar, este mar que visito há cerca de dez anos, estivesse mais velho. Nem a areia, nem a côr do céu, nem a brisa do mar. Tudo familiarmente igual. Belo e certo.

http://www.ideiasedicas.com/wp-content/uploads/2013/05/mar-porto-rico.jpg"O mar envelhece"? voltei a pensar, a olhar em volta, cheia de imagens na retina e no coração. Os rapazes mais novos, ainda a darem mergulhos no mar e a pedirem o lanche e a sairem com os amigos, à noite. Corpos dourados do sol, areia pela casa, chinelos e calções fora do lugar. Barulho e algazarra, movimento e alegria, juventude e amor vivido. Abraços e beijos, cheiros e aromas.

"O mar envelhece?" creio que a verdadeira pergunta não era esta, nem sequer era uma pergunta, mas uma afirmação, uma constatação, cheia de saudade. A ideia e a realidade dos anos que já passaram, dos ganhos e das perdas, das presenças e das ausências. Do que foi e do que é, do que passa e do que fica. Sem apelo nem agravo, sem paragens, tal como o ir e vir das ondas do mar. Imparavéis e constantes. Sempre.

"O mar envelhece?" e assim andei toda a manha, sem dizer nada a ninguém, com medo de ser ridícula e infantil ou cismada, como diria a minha mãe. E sem a liberdade do meu filho mais velho, que na sua inquietude e exigência expressava em voz alta as suas necessidades, em forma de pergunta "mãe, já chegámos às férias?"

"Sim, já chegámos, apenas eu, o pai e uma amiga. Tu e o mano não estão cá. E eu gostava. Para ver e apreciar os anos do mar. 
Filhos, o mar envelhece?"

domingo, 10 de agosto de 2014

Decisão

Chegou à sala e moveu-se discreta e bela, as notas de música e a penumbra da sala deram-lhe asas de liberdade e assim o seu corpo o mostrou, suave e delicadamente. E vi-o. Olhou para ele e soube que era belo e  possivel, ainda que o sentisse cansado e distraído. Sentou-se numa mesa e esperou. Enquanto isso, relembrou o riso das madrugadas frias e a alegria dos rumores da infância, por caminhos de pó e terra batida. Não se sentiu só nem pequena, sabia o tamanho que tinha. Esperou. 

A sala albergava gente de muitas cores, roupas leves, a contrastar com os cortinados de veludo vermelho, um pouco desbotados pelo tempo, mas ainda intensos e quentes. As mesas de madeira escura, saídas de um qualquer salão real, imponentes, grandes, confortáveis. E depois o chão, encerado, gasto pelo correr de pés em muitos anos de soirés dançantes. Sala intimista e aconchegante. E esperou.

http://choisart.org/wp-content/uploads/2013/08/0271-0162_tanzsaal_in_arles.jpgEnquanto isso, ele levantou-se e olhou-a e não sorriu. Os olhos pesquisadores estenderam-se à volta da sala e condensaram a luz e a sombra, o som surdo das vozes, as notas graves do trompete. Deslocou-se, intenso e belo, encurtando com lentidão decidida o espaço até si. E sem preguntar ou dizer ao que vinha, sentou-se. E assim ficaram. E ela esperou.

Quando a mão dele pegou na sua, agradeceu o lusco fusco da sala e o creme hidratante que todas as manhãs espalhava na pele. Interrogou-se se ele faria o mesmo, pelo cheiro de amêndoas doces e o acetinado do contacto da pele. E esperou.

E ele, com voz lenta e gasta, perguntou
- Porque demoraste tanto?
E ela, conhecedora, respondeu que nunca se tinha escondido e que andara todos os dias como uma promessa, ainda que ocupada com obrigações que a vida lhe tinha dado, tormentas de tempos idos, juras de futuros certos. E assim fora de menina a mulher, sem sabor de juventude vivida. Mas não importava, o tempo certo era este, assim disse ela. E calou-se.

E ele esperou. 
E ela cansada do que lhe tinha sido vedado, levantou-se, levantando-o também, na direção da porta e da luz do dia. Cá fora o outono cobria a paisagem de folhas secas e prantos molhados, um vento forte fustigava os cabelos, o fim de tarde aproximava-se. 
Um tempo triste, este, pensou ela. Mas não esperou pela primavera. Este era o tempo certo. E partiram, sem mais demoras. E sem mais esperas.

As lentes certas

Fico com um gosto amargo na boca, ainda que a racionalidade ajude a entender. Mas entender nem sempre chega. Precisamos de um outro mundo, mais ético e justo, menos mal dizente, mais partilhado e coletivo. Menos individualista. O que leva as pessoas, algumas pessoas, a sentirem-se donas e senhoras da verdade e da perfeição e a emitirem profecias sobre os outros? Como se lhe tivesse sido dado o poder de julgar passados e avaliar futuros, em conversas ligeiras de café, à volta de uma mesa.

Fico com um gosto amargo de boca. Relembro o que fiz e como fiz e penso que os nossos atos nem sempre se revelam transparantes e adequados para quem usa lentes com filtros de formatos esteriotipados e pouco flexiveis. As armações são quadradas e influenciam a leitura da vida e dos comportamentos. Possuem uma visão limitada e não obtém os óculos certos para ver ao perto e ao longe. Nunca os conseguirão comprar, apesar do dinheiro que amealharam, a par e passo com ilusões de lugar cativo no pódio.

óculos Thierry Lasry
Fico com um gosto amrago na boca, mas não devia. E não devo. Então, há alguma novidade nesta maneira breve e insensivel de deitar sortes? não, não há. Assim se regem alguns, sem pudor e sensatez.

Fico com um gosto amargo de boca, mas vou comer um doce. Para adoçar o azedume das palavras e retomar o encanto das minhas convicções. 

E das minhas férias. Para além de obras na casa, não quero mais empecilhos a atrapalhar o sol e o cheiro do mar que está quase a chegar. 
E vou levar os meus óculos, para ver bem ao perto e ao longe. Apesar de velhos, julgo que tenho as lentes certas e uso-as sempre com muita precaução.

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Amizade

É uma amiga livre, porque é livre como pessoa. Move-se no mundo com poucas coisas, apenas carrega com convicção, o peso das suas ideias e crenças mais profundas. Sem protestos ou declarações de princípios. É assim, porque sim, tal como existe o sol, as árvores e o vento. Não embandeira em arco, é discreta e calada, mas o corpo e as palavras são sempre convites para sentar e beber um chá. Com tempo. 

Por isso batemos à porta e surge-nos sorridente, simples e tranquila, sem limites ou horas marcadas no relógio. E isso é bom. A casa é igual a ela, com zuis de céu que se alongam quase até ao mar. Depois existem os livros e o computador e os seus estudos, mulher curiosa e organizada tem sempre à mão estratégias e produções que partilha como quem divide o pão. Assim faz sem rodeios, porque aprendeu desde menina o sentido da mesa posta e das pessoas ao seu redor.

Conversamos de tudo e tudo tem lugar, porque nos une uma história de filhos pequenos e profissões iguais. Nada como peixe na água quando falamos de crianças, rasgando a formalidade e impondo uma pedagogia de indignação. Informal. Criativa. De descoberta. Porque se descobriu noutros mundos e noutras gentes, em mercados e bairros, com lenços de cobrir e destapar emoções, danças de salão e de rua, é eclética e pertence a muitos continentes. Gosta de francês e Édith Piaf, por lá andou em tempos de menina e moça.

Já a vi zangada e triste com o mundo. Nessas alturas esconde-se numa concha bem fechada, entra e sai dos lugares em silêncio, resguarda-se de eventuais desilusões, não lida bem com o azedume de gente amarga. E não poupa discurso em tempo de desnudar verdades. Direta e repentinamente. Não conhece dialetos para amansar aparências. Endurece.

Por agora, anda de bem com a vida, redescobriu o sentido da profissão e do amor.Sentamo-nos no sofá e os olhos brilham, as palavras partilham-se, uma espécie de universo feminino fica em nosso redor e faz colo para o correr das palavras, justas, vivas e autênticas. 
Esgravatamos sentido para o que acontece e fazemos acontecer. Apoiamo-nos. Este é o sentido da amizade. 

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Aurora

Persisto na claridade dos dias. Na leveza das horas, no calor do sol. Debato-me com a natureza como a mãe de todas as coisas, exijo-lhe serviços e honras de convidada. Porque é nessa condição que vim ao mundo, para gastar as mordomias de pessoa sedenta de horizontes livres e culturas ricas. Entre a cidade e o campo, componho a minha personagem e revisto-me da beleza e da imensidão da terra. Folhas e rios, areia e vento, planicies e luar, sol, tempestades e musgos frescos. Persisto na claridade dos dias, quero-os limpos dos seus eternos descuidos, carros a gasolina, ruas com papéis e lixo, gente apertada em comboios debaixo da terra, poluição, barulho e respiração ofegante. Pouco tempo na vida, muito tempo na morte. Exijo a troca, muito tempo na vida, pouco tempo na morte. Posso também amar os homens e as mulheres, rever-lhes os símbolos e as condutas, apaixonar-me pelos seus sonhos mais limpidos e transparentes, cantar e fiar ao seu lado, fazer artefactos belos, mantas e bardalós, lençóis de linho, fotos e molduras para guardar o correr do tempo. Os vestígios da humanização.

Blog de larasperandeo : Lara Sperandeo, Quero...Assim falou, sentada em silêncio em frente ao espelho, olhando-se nas muitas rugas que lhe atravessam a pele, pequenos sulcos de dias andados, entre consumições da vida e cismas passadas. Assim falou, arquitetando o presente e o futuro, descoberta lenta dos últimos anos, recusa invitável de se confinar ao destino. O destino faz-se com as palmas das mãos e o desejo da alma, disse, com o sobrolho carregado, evitando argumentações de gente desistente. Mas ninguém falou.

Apenas uma criança se aproximou do seu regaço e aninhou a cabeça no seu colo, deixando cair uns malmequeres amarelos e um papel com um desenho, que fugiu ao vento. Aconchegou-a junto ao peito e desprendeu  um braço para pesquisar as linhas e as formas registadas. Ali estavam, com muitas cores, um sol, flores, árvores, riscos a fazerem nuvens, ervas e papoilas. E também um rio.

Sorriu, descansada. Também podia amar a infância, primeira manifestação dos homens e das mulheres e da claridade dos dias. Devia mesmo começar por aí. E descarregando o sobrolho, adocicou o rosto e as ideias, preparando-se para um novo amanhecer.

quarta-feira, 6 de agosto de 2014

A dança das palavras

Estas férias andam estranhas. Regresso a casa e há obras. Obras é uma coisa muito dificil para aguentar em férias. Sou obrigada a ficar em casa, a limpar e a arrumar, queira ou não queira, o que me deixa sempre ligeiramente irritada. E as férias não são para irritações. São para descanso, beleza e liberdade. Isso mesmo. 

Cloud PalavrasNos intervalos das obras, fujo para o sótão e agarro-me às palavras, amigas fiéis. Estão sempre onde deveriam estar e nunca me abandonam. Escorregam pelo lado de dentro e apenas uma infima parte conhece a luz do sol ou melhor dizendo, o espaço do papel que aqui é página digital. 
As que aparecem são eventualmente as mais pacíficas e cordatas, politicamente corretas, porque outras há que se embrulham em leitos de pensamentos, como fios de água, num contínuo vai e vem, sem nunca chegarem à foz. Permanecem aprisionadas em correntes de energia suave, dentro do peito, ligeiramente malinas, como dizia o meu sogro, que dava nomes extraordinários às pequenas coisas do dia a dia. Malinas é como ficam algumas palavras que me perseguem ainda que em tom de férias, lenta e pausadamente. Ainda assim não desaparecem e eu a pedir-lhes tréguas. Dizem-me que não há tréguas para quem tanto pensa e ama. Será. 

Como não posso vencê-las junto-me a elas e tento dar-lhes um fim. Subo ao sótão, abro o computador e escrevo. As mais dóceis e bem mandadas saem devagar, muito compostas e cheias de uma ligeira discrição. As outras mais profundas e densas, com mau feitio e maus propósitos, enrolam-se umas nas outras, fazem galhofa e pantominices e nada de comporem texto que se veja. 

Julgam-se muito espertas, mas eu acho que apenas estão verdes, ainda não amadureceram o suficiente para se apresentarem de corpinho bem feito e com sentido que se veja. Por isso ficam escondidas e outro estatuto não podem ter. Sinto-lhes os protestos, mas não tenho nada a ver com isso. Estou de férias e ainda por cima com obras cá em casa. 
Que se organizem, cresçam e apareçam. Como sempre, serão bem vindas. Mais não posso fazer.


terça-feira, 5 de agosto de 2014

Tarde com flores



Fui ter contigo à tua última morada, levei um balde, uma tesoura, um ramo de flores. Fui a pé, por umas ruas novas que agora fizeram com lugar para caminhadas e bicicletas. Pelo caminho fui parando para apanhar mais flores, lírios do campo, amarelos, jarros brancos, outras flores lilases e brancas e roxas, de que nem sei o nome nem importa. São muito belas, a salpicar o verde das silvas, das canas, dos pastos que crescem por todo o lado numa terra com muita água. Fui também à ribeira do Martinho, ver os flamingos, vêm agora para ali, muitos, de pé na água, são lindos. 

Quando cheguei perto de ti o ramo de flores tinha aumentado no tamanho e nas cores, arranjei a tua jarra o melhor que pude e sabia e a dos avós também. Ficou tudo muito bonito, o silêncio do lugar deu-me tempo e paz para compor os ramos, alisar e molhar a terra, tirar umas ervas daminhas. Depois conversei um pouco contigo, falei-te de mim, dos teus netos, do meu irmão, de como gostamos de ti e precisamos que continues a zelar por nós. Falei-te também da nossa saudade que dói um bocadinho e é feita de lembranças suaves, alegres e melancólicas. 

Depois vim-me embora pela mesma rua, em passos demorados, a procurar amoras, para comer umas quantas como quando era menina. Mas não havia, as silvas secas pareciam mortas e órfãs.

Quando cheguei a casa, tinha no balde mais flores e fiz uma jarra que coloquei na sala. Sentei-me na cadeira de lona, na eira, a respirar de algum cansaço e a olhar as folhas do milho que se colam junto ao muro da casa e impedem os olhos de se perderem no horizonte. Mas o verde das folhas é lindo e o som que fazem com o vento que passa, adormece-nos em dias amenos como este. 

Assim fiquei na cadeira, a sentir o silêncio e o calor desta tarde soalheira. Uma tarde de flores e conversas contigo. Em pensamentos. Quem me dera que te sentasses também aqui na eira e falássemos das peras que carregam a pereira que tanto gostavas. Está cheia de peras, mãe, temos que as guardar para amadurecerem.  


sexta-feira, 1 de agosto de 2014

Ír à praia



Fui à Torreira. 
Nunca me parece que seja ir à praia, porque este mar tem outro som e outro cheiro. Forte, muito forte, o mar bate na areia e ninguém sabe o que ele diz. Era assim que cantava quando era menina, as mulheres que me acompanhavam não usavam fato de banho e nós íamos molhar os pés, o único banho então permitido. E tinham que levantar as saias, nos dias em que o mar estava zangado e furioso, mandava ondas malucas que chegavam aos joelhos e às penas. Lembro-me dos risos e das corridas para trás, para salvar o resto do corpo que não via sol, a não ser através de blusas de flores ou de riscas feitas na costureira. Nesse tempo e neste lugar não se ia ao pronto-a-vestir, sabia lá a ti Palmira e a minha tia Domingas que na cidade, em algumas lojas, se vendiam vestidos e calções e soutiens. Não, as mulheres vestiam corpetes, feitos à medida, ainda tive um em menina e moça, feito pela minha tia, que julgo nunca usei, porque nesse tempo já vivia na cidade e queria ser como todas as minhas amigas. 

papel de parede Ondas do MarFui à Torreia e molhei os pés. Não, não puxei a roupa para cima, estava de fato de banho, mas parece-me que resguardei o corpo das ondas, quero pensar que foi pela temperatura da água, as memórias não se podem prolongar tanto que atraiçoem as experiências vividas. Cresci na cidade, na margem sul do Tejo e já me banhei em tantas águas e com tantos biquínis e fatos de banho, que me parece pouco provável fugir do mar, a repetir a graça de então.

Mas não tenho a certeza. Com a idade, vamos misturando e relacionando tudo o que nos aconteceu, o que é uma forma de sabedoria, julgo, de integração da pessoa que fomos e da que hoje mora em nós. Uma espécie de composição identitária, a confirmar a nossa riqueza, diversidade e pluralidade de ser gente. Com uma história e um passado. 
É possível que esta necessidade nos afete com maior intensidade em alguns dias e que dessa forma, resguardemos o corpo do mar e fujamos às arrecuas, para proteger a roupa que não temos em nós. Apenas na memória e no álbum de fotografias a preto e branco guardado na sala.