sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Um dia de chuva


Um dia de chuva é tão belo como um dia de sol.
Ambos existem;

cada um como é.                                                                                        


Alberto Caeiro, in "Poemas Inconjuntos"   

                                                                                                                     

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Carta ao Manel

Eu sei que não vais poder ler esta carta, nasceste apenas há cinco dias e neste momento apenas lês, com absoluta competência e disponibilidade, os cuidados dos teus pais,  em especial os da tua mãe, que te alimenta do leite morno do seu corpo, o mesmo corpo que te acolheu e guardou com serenidade e alegria durante 9 meses. Sei que foi assim. Sem te conhecer, eu e outras amigas fomos acompanhando  o riso, os comentários e a expectativa da tua avó que te esperou com disfarçada ansiedade, atualizações regulares do teu crescimento até ao anúncio do grande dia: "vai ser no domingo!". E foi, 25 de novembro. De alguma forma também te esperámos e  finalmente cá estás, nesta terra de homens e mulheres que já começaste a conhecer e a gostar, porque te mimam todos os dias com o melhor que se pode ter: abraços, colo, roupa quentinha, palavras mansas e perfeitas, sorrisos e sonhos. A importância que tem em ser-se acolhido assim! Um dia irás perceber. E agradecer, ainda que seja um direito teu, mas que muitos outros meninos não têm.  Mas falaremos disto mais tarde, não hoje. Não agora. És ainda muito pequenino.

Agora é tempo de renovar a esperança e acreditar em todas as promessas. Porque quando um bebé nasce, uma nova pessoa se projeta no mundo e podemos de novo esperar e acreditar. Porque os homens e as mulheres são capazes do melhor e do pior na sua relação com a vida. Agarremo-nos ao melhor como lema e prática de ser-se gente.  Sabes como é? É cresceres e poderes seres ativo, critico, inovador, atento, poderoso, solidário, livre...e amoroso e feliz e doce. Muita coisa? Não, não será,  porque tens já como marca de nascença  as condições para te sentires um menino e uma pessoa de corpo inteiro, o que quer dizer, seguro e sensível perante ti próprio, os outros e os acontecimentos que possas viver e nos quais irás certamente, participar. 

Seria pouco verdadeiro não dizer que sabemos que na vida nem tudo depende apenas de nós, da individualidade de cada pessoa que nasce. Também existe a sorte, uma espécie de estrelinha, coisa que não é de menos importância no decorrer dos dias e na construção do futuro.
Por isso te desejamos, Manel, hoje e agora e para o tempo que há-de vir, tudo o que possas ter e aquilo a que tens direito. A estrelinha, também, para o que der e vier. E sobretudo, para que cresças forte e competente e possas acrescentar qualquer coisa ao mundo. É muito?  Não, é a promessa que sempre se renova quando um bebé nasce. Que assim seja, de novo e contigo. 
E mimos, muitos mimos!     


segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Palavras emprestadas

Hoje faltam-me as palavras, esgotaram-se ao longo do dia, ficaram espalhadas em muitas pessoas e lugares. Mas preciso de reter algumas dentro de mim, o dia não foi fácil, é necessário suavizar o cair da noite. Aqui ficam, pela voz de Manuel António Pina.


Amor como em Casa


Regresso devagar ao teu
sorriso como quem volta a casa. Faço de conta que
não é nada comigo. Distraído precorro
o caminho familiar da saudade,
pequeninas coisas me prendem,
uma tarde num café, um livro. Devagar
te amo e às vezes depressa,
meu amor, e às vezes faço coisas que não devo,
regresso devagar a tua casa,
compro um livro, entro no
amor como em casa.

in "Ainda não é o Fim nem o Princípio do Mundo. Calma é apenas um Pouco Tarde"

sábado, 24 de novembro de 2012

O lugar do sótão

Tenho um sótão na minha casa, cheio de livros, muitos livros, estantes, mesas, computadores, sofás, quadros nas paredes, fotografias, desenhos de crianças, sacos e malas, peças de artesanato, uma máquina de escrever antiga, um estirador, dossiers, caixas de charutos, canetas, mantas no chão e muitas outras coisas. Mesmo muitas. É um sotão grande, local propicio à  acumulação de coisas, tudo se trás cá para cima e existe uma desordem de sitio de trabalho até tarde, local de inúmeras conversas, intimidades com amigos, gente da casa e família. Espalham-se por todo o lado esses testemunhos, encontro no meio dos papéis, cartas, postais, prendas pequeninas, caixas, escritos e produções de crianças, números de telefone, recados, dedicatórias, lembranças, sonhos.  É um sótão dificil, nunca está arrumado, enche-se com uma facilidade vertiginosa dos vestígios da vida, coisas pequenas, quase inúteis, mas que teimo em guardar, porque são parte de mim e do caminho que tenho feito. É neste sótão que penso, preparo aulas, procuro poemas para as crianças, desenho, escrevo, choro, deslumbro-me, converso ao telefone, leio, pesquiso, amplio ideias, fecho-me em mim ou fujo para longe. Sem nunca de cá sair. Foi e é neste sótão que desenvolvi longas conversas, fáceis, difíceis, bonitas, surpreendentes, repetitivas, desafiantes. Este sótão está cheio de palavras e gestos de vida, muito para além dos objetos e também por causa deles.

Às vezes zango-me e irrito-me com esta diversidade estonteante, procuro dominar e endireitar o pulsar quase autónomo deste espaço e torná-lo mais regular. Normalizá-lo, assim como uma qualquer outra divisão da casa. Dou uma volta na sua organização, imponho regras, cada coisa no seu lugar, livros de educação ao pé de outros de iguais conteúdos, os dossiers todos seguidos, as revistas juntas nas prateleiras, as fotografias perto umas das outras. Deito fora papéis antigos, rascunhos de reuniões, capas de encontros antigos, recados, canetas que não escrevem, pequenas peças de lego da escola...  e suspiro de alivio. Fica tudo como deve de ser, direitinho, mais controlado e capaz de ser identificado ao primeiro olhar. Tudo certo e tudo exato. Mas passado algum tempo, tudo volta ao mesmo: sai-me, sem que saiba como, de um lado qualquer, uma gaveta ou coisa assim, um texto escrito num dia cinzento, uma carta de saudade, um escrito sobre as crianças, um poema de amor, uma fotografia minha antiga, uma despedida ou um reencontro.  E sento-me no chão e leio e observo e penso e detenho-me...espalho as coisas no chão, vou buscar outras, recomponho e recomeço, reaprendo e revisito memórias e outros lugares. E desisto de arrumar este sótão à semelhança de qualquer outro espaço da casa. Não é isso que ele é, não é assim que o vejo, não posso domar a sua natureza quase selvagem. Porque ela traduz uma parte significativa de mim, nós e laços que fui atando e destando ao longo da vida, num dedilhar errante que ainda hoje se cumpre. E sem alternativa, conformo-me com a sua principal função na casa:  um lugar de recato e trabalho, memória, projeto e criação. Que assim seja, pois.

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Lições de pedagogia: as gaivotas e a casa


Chamava-lhe a Teresinha das ternuras, porque era uma menina doce e também porque nesse ano, em tom de brincadeira e de afeto, quase todos tinhamos outros nomes acrescentados aos que nos tinham dado à nascença. Eu por exemplo, era a Manela aguarela, derivado de termos andado a compor rimas. Ah e claro, também a experimentar aguarelas. Melhor dizendo, pinturas "aguadas". A Teresinha tinha 4 anos e até janeiro, nunca quis fazer desenho. Também nunca insisti muito, fazia muitas outras coisas, principalmente andar agarrada a um urso, seu companheiro fiel dos dias da escola. 
Depois do ano novo iniciámos um projeto e um dia fomos todos ver o rio Tejo, os barcos, andámos à beira rio e apreciámos os voos das gaivotas, durante muito tempo. Lindas que eram, cinzentas e brancas, a voar em muitas direções. De regresso à escola e com tanto entusiasmo propus que fizessem o desenho das gaivotas, "ou de outra coisa que tivessem gostado", lembro-me de ter dito, numa tentativa de não condicionar muito. Pensava eu. As crianças procuraram diferentes papéis, lápis, canetas, deitaram-se no chão, cobriram o espaço todo da sala e começaram a fazer gaivotas. Eu, jovem educadora, estava maravilhada com tanta liberdade de traços, riscos e rabiscos e com as formas diferenciadas das gaivotas. Eram grandes, muito grandes.  
Cirandando pelo meu deles, de repente dou com a Teresinha a chorar em silêncio, sem um unico risco ou rabisco na folha branca. Rápida, ajudei-a a lenvantar-se, sentei-a no colo e perguntei-lhe porque chorava
- Mas oh, manela, eu não sei desenhar
- Teresinha, claro que sabes, então, fazes como quiseres, cada um faz à sua maneira
- Mas eu não sei, eu não sei! E continuava a chorar, agora já a soluçar.
Poderia te consolado um pouco mais a Teresinha e depois tê-la deixado ir ter com o seu urso, como tantas vezes acontecia. Mas o choro da Teresinha, a recusa em sair do meu colo, a sua quase aflição perante tanta competência dos outros meninos, levou-me a continuar junto de si e ouvi-me dizer
- Tu queres desenhar?
- Não, eu não sei...mas eu gostava de desenhar
- E o que é que querias saber desenhar?
- Olha uma casa...gaivotas não, uma casa.
- Queres que te ajude?
Então, contra muita coisa que tinha aprendido, peguei num lápis e na mão da Teresinha e juntas, comigo a comandar o traço, fizemos uma casa. Rudimentar, daquelas que todos fizemos na infância e que é um retângulo e um triângulo por cima, a fazer de telhado e outro retângulo a fazer de chaminé.  Não fizemos só uma, fizemos várias, todas iguais. A Teresinha acalmou o choro e seguia os traços com interesse. Quando as gaivotas dos outros meninos começaram a chegar para que as vissemos, eu e a Teresinha mostrávamos as nossas casas, que ficaram expostas com os nossos dois nomes, junto das gaivotas.

E depois? Depois, durante muitos dias, a Teresinha desenhou muitas casas todas iguais. Repetia as formas e as cores, em silêncio e mostrava aos meninos. Durante esse tempo, de repetição, como jovem educadora, tive muito medo de ter, com o meu gesto, inibido e condicionado a Teresinha, na sua descoberta de fazer uma casa. Ou qualquer outra coisa do seu agrado. Mas sabia, ainda que intuitivamente, que lhe tinha possibilitado o inicio de uma relação de segurança com o papel e o lápis. Via-se, ainda que tudo fosse sempre igual. Restou-me esperar. E acreditar que a confiança da Teresinha crescesse ao ponto de abandonar a casa e partir para outros lugares, formas, cores, traços e rabiscos. 
E assim aconteceu. Com o passar dos dias e semanas, foram aparecendo em papéis brancos, muitos outros desenhos da Teresinha, nada rudimentares, sem casas e com coisas que ela queria e gostava. Nunca mais me pediu ajuda. A que tinha sido dada, parecia ter sido a necessária, ainda que metodologicamente ao contrário do que tinha aprendido e continuo a acreditar: cada um faz a casa como sabe e não como os crescidos querem. Mas há meninos, ainda que não muitos, que precisam de um colo e de um envolvimento significativo com o adulto, para desembrulharem o fio da criatividade e combaterem o medo. Hoje, julgo que fiz bem. Principalmente por ter acreditado no poder do afeto e nas capacidades da Teresinha. Ainda que durante algum tempo me tenha perguntado se deveria ter agido mais cedo ou se a tarde do passeio ao Tejo fora o momento exato. O tempo que levamos a entender como é cada criança. Não fossem as gaivotas e as lágrimas da Teresinha...

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Coisas belas

Persegue-me um desejo de coisas belas. Belas e profundas, essenciais. Sempre esta teimosia mansa de virar do avesso algumas coisas da vida, os gestos desconexos, as palavras cortantes, a ausência do amor, os risos tristes, algumas máscaras que usamos, frias e opacas. Deitar fora os desperdicios de nós, aquilo que não interessa, que enferruja e  impede, que retarda e  imobiliza o poder da criação.

Persegue-me um desejo de coisas belas. Imagens que trago na cabeça e nos sentidos, mãos esguias num piano, um lenço a esvoaçar leve, um afago, pequenos passos de dança, poemas soltos, algumas gargalhadas frescas, um longo café forte numa esplanada de uma cidade. Bonita, de preferência, pode ser Paris, no "Les Deux Margots", era aí que se encontravam o Sartre e a Beauvoir, os meus heróis de adolescente. O amor eterno e livre. A escrita como lastro, cama e contestação.   

Persegue-me um desejo de coisas belas. Não, não são as luzes de néon da cidade prometida, os objetos de catálogos que decoram montras perfeitas, o desfile da modelo mais jovem e sensual da moda. Não é o ouro ou a prata, que reluz e ofusca, mas antes o incenso, o mais belo dos presentes dados na noite de natal ao menino. 

Persegue-me um desejo de coisas belas. E não são coisas de outra dimensão, etéreas ou paradisíacas, apenas que possam traduzir o essencial de nós, estampado no rosto do comum dos mortais.  Mas somente naqueles que se encantam com madrugadas frias, noites de luar, vozes de crianças, conversas de amigos, amores maiores, ideias novas, liberdade e ousadia.
Persegue-me o desejo de coisas belas. Tão belas que ficam sempre incompletas

terça-feira, 20 de novembro de 2012

Impossibilidade

Queria agora sentar-me na beira de um rio, deixar os pés molharem-se devagarinho num caudal de águas mornas, iluminadas por um sol dourado de outono. Mas lá fora o vento sopra jarradas frias e a chuva cai com força nos telhados, percorrendo velozmente as ruas da cidade. Não há como sair nesta noite de temporal, fechadas que estão as portas e janelas, sem réstia de esperança num tempo ameno.  Por aqui me fico, embrulhada num cobertor de tapar frio e tremuras, que o corpo nem sempre aguenta as mudanças de estação. E também as outras, as da vida. 

domingo, 18 de novembro de 2012

Lições de pedagogia: o dia do pai em maio

Foi já há algum tempo, era uma educadora mais jovem, mas não me esqueço. Estavámos lá no jardim de infância, ocupadíssimas com a preparação do dia do pai. Prendas, textos, postais...e conversas, que as crianças gostam de conversar, de falar de si e da vida. E um menino, disse
- Mas eu não tenho pai, Manela
O grupo olhou para o menino, depois para mim, alguns rostos admirados e eu, com calma a dizer
- Claro que sim, tens, ele só não está contigo. Não vive na tua casa.
- Mas ele abandonou-me, a minha mãe disse-me
E eu com cuidado - ideia de mãe é para se respeitar, não é sensato desautorizar quem é figura de referência para a criança - puxei o menino para o meu colo e disse
- Abandonou-te? Pois eu não sei, se a tua mãe diz...mas eu acho é que ela deve estar muito zangada com o teu pai, porque ele foi embora e ela ficou triste...e agora diz que ele te abandonou, é isso que ela sente, se calhar foi assim...mas eu acho que devias deixar um bocadinho de espaço no teu coração para o teu pai. Para pensares nele e também para que que um dia, quem sabe, se o teu pai aparecer, lhe poderes perguntar o que aconteceu. Nós não sabemos, tu não sabes pois não?, não sabes mesmo o que que aconteceu para o teu pai se ter ido embora...e ele pode ter uma explicação qualquer...
E a conversa coninuou com os outros meninos a darem opiniões, a contarem dos seus pais, separações, zangas e outras coisas lá de casa. Nesse dia a azáfama do dia do pai parou, ficámo-nos por esta longa conversa, forte, sensivel e dificil. 

 Passado uns meses, talvez dois, numa segunda-feira, o menino entrou na sala de manhã, a gritar e disse
- Manela, Manela, tinhas razão
Sem me lembrar da conversa anterior, digo-lhe
- Bom dia! em que é que eu tinha razão?
- O meu pai não me abandonou
Sentámo-nos todos, muito depressa, o momento era muito importante. Voltei a sentar o menino no meu colo e pergunto-lhe
- Então como é que soubeste isso? Queres-nos contar?
- O meu pai veio ver-me este domingo. Ele disse-me que não me abandonou. Apenas fez um disparate e teve que ficar preso
- Ah, sim, disse eu, às vezes essas coisas acontecem na vida. As pessoas fazem uns disparates, às vezes nem sabem bem porquê, mas como são coisas menos boas, as pessoas têm que ir para uma casa, uma prisão, e ficam lá algum tempo...mas olha, gostaste de ver o teu pai? como é que foi?
 E o menino a sorrir disse
- Ele agarrou-me e mandou-me ao ar muitas vezes e não me deixou cair...e disse que estava sempre a pensar em mim...  

E a conversa continuou. Com pormenores sobre um pai que voltou e um filho, menino, a sorrir no centro da roda, com outros meninos também a sorrirem,  atentos e embevecidos com a felicidade estampada no rosto do amigo. E eu também feliz, pela alegria do meu menino. E sobretudo por não ter desistido de tentar, na conversa inicial, resgatar uma imagem positiva do pai, coisa fundamental para se prosseguir com serenidade e segurança na infância. E feliz também  pelo acaso. A sorte que tive em ter comprovado a minha tese. Melhor que isso: a sorte que o menino teve de um pai que tendo partido, não o abandonou. Nesse dia, é que foi mesmo dia do pai e não foi necessário estar definido no calendário.        

Conselho aceite

Uma amiga minha de longa data, a quem costumo contar muitas das minhas histórias profissionais - e não só, entenda-se, porque a tomar um café costumamos dar a volta a muitas voltas da nossa vida -  desde sempre me disse que eu devia escrever muitas das situações que lhe relato e que foram por mim vividas nas diferentes salas onde tenho estado com crianças, colegas e familias. O que essas histórias têm gerado de discussão, risos, análises e longas conversas entre mim e ela, que nem sequer está ligada diretamente ao mundo da educação, justifica, por si só, uma escrita. Diz ela "um dia destes já não te lembras, e é pena..." Talvez tenha razão, um dias destes quero recordar tim tim por tim tim tudo o que aprendi com as minhas crianças e já não saberei reproduzir as suas falas e os seus ditos, que foram fundamentais para a educadora e a pessoa que hoje sou. Parte do meu património pessoal e profissional foi constrúído na interação diária com meninos e meninas, que me mostraram, ao longo dos anos, a espantosa maravilha e complexidade do ser humano, a riqueza e diversidade da infância, que considerada uma idade muito jovem de ser-se gente, é profunda, séria, ativa e procurante.
Embora saiba que já muito esqueci, vou inaugurar neste blogue, uma especie de secção as "lições de pedagogia", não para citar autores e teorias, mas para dar voz às crianças que comigo conviveram muitos dias da sua vida. Foram elas que me ensinaram as melhores coisas que sei, quando comigo partilharam os seus sentimentos, emoções, dificuldades, angustias e até em alguns momentos, raiva e dor. E também muita alegria, envolvimento, empenho, curiosidade,  prazer.
Parece-me justo e certo que assim seja. A palavra pois, a quem me deu, sem que eu pedisse, lições de pedagogia.

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Carta à minha mãe


Amanhã vai fazer cinco anos que partiste, sem aviso prévio ou ultima recomendação, como sempre fazias quando te despedias. Quando vi o teu rosto frio pela ultima vez, senti uma explosão insuportável no peito e juro-te que pensei que iria atrás de ti. Mas não fui. Não é assim que a vida acontece, normalmente. Vão se embora os que por detrás de nós nos amparam e ficamos muito sós, tremendamente sós, a amparar os que à nossa frente se perfilam. E é aí que percebemos, com maior nitidez e surpresa, que os próximos a partir seremos nós. A vida ganha, nesse exato momento, a sua absoluta dimensão transitória. 
Para além disto, que é muito, desde há cinco anos que tenho saudades tuas. No incio era quase sufocante, faltavam-me os teus passos pelas escadas, a forma como andavas pela sala ou te sentavas a ver televisão no sofá, sempre atenta aos noticiários e debates politicos. Faltavam os sábados das compras dos legumes, na praça, para serem fresquinhos e iguais aos lá da terra, as idas aos médicos, o jantar que fazíamos em conjunto e as tuas perguntas sobre a roupa que escolhias. Querias a minha opinião, com o avançar da idade e a minha persistência, foste ficando um pouco vaidosa, conquista recente da tua vida tão pouca dada a acessórios e enfeites. Concentraste-te sempre no essencial e imprescindível, do tempo tiraste-lhe poucas folgas.

Agora, passado estes cinco anos, a dor é um pouco mais ténue, mais disfarçada, menos acutilante. A saudade permanece, sobretudo nos dias em que me sinto só, atrapalhada com a vida, incapaz de gerir com prontidão as suas múltiplas tarefas e dilemas. É que sempre me investiste de uma coragem e uma força que julgo não ter, mas que acontecia na tua presença, exatamente porque ao acreditares em mim como mulher capaz, eu tornava-me capaz de quase todas as coisas. E é isso que eu já não tenho: tu a puxares-me para o centro dos dias, energizando-me com as tuas perguntas, os teus desabafos, as tuas exigências. E sabemos quanto isso nem sempre foi fácil. Mas foi sempre uma constante, um modo de vida que inaugurámos bem cedo entre as duas, por causa de sermos mãe e filha num tempo dado de uma familia concreta.

Amanhã, vou-me lembrar ainda mais de ti e recordar sobretudo o teu riso de menina, que raramente abandonavas. Olhei-o sempre como a tua arma mais forte, aquilo que te fez prosseguir os dias, acreditar no mundo e procurar a sua face lunar, sem desistências. Mesmo que não o tenhas sabido. Mas a tua coragem é ainda hoje uma enorme lição de vida que guardo no silêncio do meu coração.

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Encosta-te a mim

Faz como diz a canção, encosta-te a mim. Doce e convictamente. Começa lentamente a retirar as cicatrizes que cobrem a tua pele interior e turvam o teu olhar. Não é fácil, eu sei, mas procura um bálsamo morno, com cheiro a rosmaninho,  passa por cima, à volta e ao lado com muito cuidado, as cicatrizes ramificam com uma força vertiginosa em todas as direções. Tem que se ser meticuloso e persistente. Quase cirúrgico. E focalizado. Tratar das cicatrizes é dificil.

Mas encosta-te a mim, sei que vai ajudar. Olha por cima do meu ombro, talvez alcances a linha do horizonte e uma alvorada de palavras certeiras, para renovares o dicionário com que lidas com a vida. Vê de que são compostas, mede-lhes o sentido e o alcance, pressente o seu significado, não te preocupes com as regras da gramática, não é por aí que acederás ao decréscimo da dor e à restauração da alegria.

Encosta-te a mim, não fujas ainda, este empreendimento é de longo alcance, uma quase corrida de fundo. Por isso, encosta-te a mim, o que fazemos em conjunto tem força renovada, respira lenta e profundamente, descansa. Ouve todas as canções, lê todos os poemas, aprecia todas as obras, deixa que a inspiração de outros te contaminem. São poderosos antítodos na remoção do desalento e na cicatrização das feridas. 

E acredita. Acredita que o coração é como uma árvore. quando quer, volta a crescer (Mia Couto, provérbio moçambicano)

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Afetos

Há afetos que nunca morrem, acompanham-nos desde sempre, quando nos descobrirmos pessoas já lá estavam, como coisa nossa e permanecem intocáveis à medida que vamos ficando mais velhos. Pertencem-nos como uma parte qualquer do nosso corpo, uma madeixa de cabelo, as mãos, o joelho ou os olhos. Fazem parte de nós e nunca se discutem, a não ser na remota possibilidade de desaparecerem fisicamente. Porque nem isso, que é possivel e provável, permitimos pensar que possa acontecer. São afetos eternos. Alimentam-se do património comum, dele fazem história(s), lastro para viver e apoio incondicional. São as nossas fortalezas em tempo de lutas miudinhas, lareira acesa em noites de tempestade, porto de abrigo em viagens de mar alto. São também, sem metáforas, conversas soltas à volta de um café, troca de ideias em maré de decisões, convivios em datas festejadas, com flores e abraços à mistura. 

Destes afetos conhecemos quase tudo: a sua amplitude, singularidade e geografia, mesmo quando o correr da vida os empurra momentaneamente  para fora do trajeto comum, colocando-os fora da nossa mira de curto alcance. Nunca nos inquietamos, deixar de os ver é condição da sua autonomia e liberdade, sabemos de fonte segura que regressarão, apenas se desviaram um pouco para respirar, procurar um rio claro ou um horizonte a perder de vista. Coisas certas para continuarem a ser afetos.
E porque são eternos são profundos, solidários e autênticos. Imprescidiveis para a nossa vida, como a água, o pão, o sol, as palavras, o riso, o choro, coisas que fomos comunhando ao longo do tempo e que tornam estes afetos eternos.  A alguns deles chamamos irmãos. Eu tenho um.


domingo, 11 de novembro de 2012

Ainda o outono, com Eugénio de Andrade


É outono, desprende-te de mim.

Solta-me os cabelos, potros indomáveis
sem nenhuma melancolia,
sem encontros marcados,
sem cartas a responder.

Deixa-me o braço direito,                                                         
o mais ardente dos meus braços,o mais azul,                                                                
o mais feito para voar.

Devolve-me o rosto de um verão
Sem a febre de tantos lábios,
Sem nenhum rumor de lágrimas
Nas pálpebras acesas.

Deixa-me só, vegetal e só,
correndo como rio de folhas
para a noite onde a mais bela aventura
se escreve exactamente sem nenhuma letra.

Dias de outono


Foi sempre assim. Chegava o mês de setembro e a descida do sol apaziguava o corpo e a alma, as praias ainda visitadas devolviam uma solidão com paz, parecia que tudo se aquietava para dar lugar a um silêncio desejado, contrariando os ruídos imensos dos meses anteriores de verão. Não que o verão fosse um tempo de deitar fora, mas apenas se prolongava em demasia: sol, mar, calor, areia e água salgada, noites longas e amigos e gargalhadas. E sentia-se a vontade de um certo recolher, ficarmos menos cheios dos outros e mais perto de nós. De uma certa essência.

Foi sempre assim e continua a ser. Outubro e novembro devolvem-me sempre as cores e os frutos mais belos, folhas de multiplas tonalidades de castanho, amarelo e laranja, ligeiros ventos que fazem dançar as árvores, a chegada do frio, de mansinho, a obrigar a abrir as gavetas e a procurar o agasalho quente que faça subir o calor do corpo. E tudo se torna mais doce e morno, menos gritante, menos luminoso, mais aconhegante. Acho o outono belo e inspirador.  

Quando estava com crianças, em sala, o outono era um desafio tremendo. Corriámos para a mata, e recolhiamos paus, arbustos secos, caruma, pequenos troncos, folhas, muitas folhas. De tamanhos, formas e cores diferentes. Depois era um fazer de produções: pinturas, colagens, composições diversas com materiais naturais. E a sala ficava invadida de outono, com amarelos, castanhos, verdes escuros e claros...árvores só com troncos, grandes e pequenas, folhas decalcadas e recortadas...o outono na sua expressão maior. Ficava sempre deslumbrada e as crianças também. A magia estava em nós, claro. Na forma como investiamos as cores, os sentimentos e a expressão.
Hoje, no outono, continuo a deslumbrar-me com as cores e as formas, o início do frio, o sossego do tempo e  a possibilidade de hibernar, tocando de perto o aconchego de mim. Com uma certa nostalgia à mistura e  imagens que sempre me acompanham e tornam o mundo muito mais belo. 

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Matizes

Nunca somos um só. Compostos de mil ideias e feitios, ajeitamo-nos vezes sem conta ao que ao nosso redor nos cerca, revelando os diferentes matizes de que somos feitos. Às vezes brotam os azuis e verdes, com um pouco de branco à mistura, parecemos o mar em dia de verão, percorrendo a areia molhada...outras vezes, ficamos cinzentos e pardos, cor de burro quando foge, como um dia de inverno, não há réstia de sol que nos alente ou nos mude a cor. Também já estivemos verdes, sem pinga de sangue, quase a perder o pio, no meio de alguma aflição ou atabalhoamento.  E já nos experimentámos luzidios, brilhantes que nem estrelas cadentes, cheios de força e beleza a exercer fascinios sobre o mndo... 
E roxos, já fomos roxos, cor da paixão em   semana  santa, perdidos de emoção, a chorar por dentro, a controlar por fora...
Antonio Poteiro - Naif - 25x30cm De 2007
Já fomos (e somos) de tantas cores, numa multiplicidade de tonalidades, imagens, desejos, sonhos. De nós para nós. Numa riqueza que só cada um sabe e sente.


terça-feira, 6 de novembro de 2012

A propósito do meu gato

Não sei o que parece apetecer-me assim falar do meu gato, eu que nunca gostei muito de animais. Quer dizer, não ligava, não lhes dava muita importância, tão embrenhada que sempre andei a tentar decifrar o mistério da vida das pessoas, dos homens e das mulheres, atividade em que investi quase toda a minha energia e afeição. Investi e invisto, muitos mistérios permanecem ainda encobertos e de dificil desocultação. 
Lembro-me apenas de um gato vadio, na infância, com o qual me irritava muito, porque arranhava o meu avô, que quase cego, chamava por mim, aflito. Eu corria atrás dele e só descansava quando já não o via. Não foi um bom principio. De cães tive sempre medo, até mesmo quando fizemos a vontade ao meu filho mais velho e comprámos um, eu a contragosto, mas vencida. Ficava no quintal e estava proibido de entrar em casa. Mas era bem tratado.
No natal do ano passado, perto da meia noite recebi um gato, prenda conjunta de três pessoas de quem gosto muito. Ainda por cima, chegou num cesto de verga pelas mãos de duas grandes amigas que cumplices com a situação, se ofereceram para fazer a surpresa ao vivo.  Quando o gato, bem pequenino, de pelo cinzento, a miar, saltou para o meu regaço, juro que não sei o que senti...estupefacta, maravilhada com a ideia de quem me deu um gato e quem se prestou a fazer a encenação, emocionei-me...mais uma vez pelas pessoas, claro, que tinham sabido inventar um prenda absolutamente diferente. Viva. Quanto ao gato, olhei para ele desconfiada e juro que pensei, sem dizer nada a ninguém "como é que me vou relacionar com ele?". Dias mais tarde, comentava já sem receio ou sentimento de culpa "eu acho que não vou ser capaz de gostar muito dele..."
O gato, o meu, chama-se Gattuso - nome combinado cá em casa e ao qual não me opus -  já está crescido. Muito. É um persa cinzento, com um pelo grande e macio, que todas as noites tem um ritual: procura-me no sofá, aconchega-se no meu regaço e espera que lhe faça festas e mimos. Ronrona, de nariz levantado e enrosca-se de mil maneiras diferentes, a procurar o meu calor e partes do colo de que gosta mais. Ajeita-se como entende. De vez em quando enconsta os olhos muito perto dos meus e olha-me com atenção. Ponho as mãos no seu pelo e sinto como é macio e morno. Dizem cá em casa que é arisco e de facto tem dias em que se esconde e corre e foge e...faz xixi onde não deve, coisa que é atipica para um gato, dizem os entendidos. Não me importo, parece-me coisa da sua "personalidade", a que acho graça, tirando os dias em que me zango. Mas sou branda e gosto muito dele. Não creio que tenha aprendido a gostar mais de animais, apenas me liguei a este, um bocadinho mais em cada dia que foi passando, desde a noite em que cá chegou.  Pelo seu pedigree?  Não, pela forma como entrou cá em casa, pelas pessoas que mo deram, pelo significado da oferta. E porque era natal, havia luzes e anjos, estrelas e duendes e o ano novo se apresentava como uma promessa de renovação da vida e do amor.  E também claro pelo seu jeito de ser gato. Mas isso é coisa de menos importância, quando comparado com a história da sua vinda cá para casa.

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

As palavras

Dizem-nos as palavras, em jeito de conversa e elas entranham-se na nossa pele, escavam mais fundo no lugar das veias e vão direitinhas ao coração. Procuram um lugar conhecido, alguns espaços mais recônditos, aconchegam-se nas memórias que identificam, fazem cama e centro de sala e tomam conta de tudo. Tudo é mesmo tudo. Depois, muito juntas, com a força da sua natureza, invadem o nosso corpo, principalmente os olhos, tornando-os tristes e apagados, apenas livres para a saída das lágrimas. Quando aqui chegam, não há como parar o caudal da água, a inundar a cara e as mãos, a cair numa folha de um livro qualquer que estejamos a ler. Muitas vezes atacam também a garganta, fazem um nó no lugar por onde sai e entra o ar que respiramos, transformando os dias num continuo desfiar de soluços. Ainda que em silêncio.
Porque o pior destas palavras que nos dizem às vezes, em alguns dias da nossa vida e se entranham no nosso corpo, é o seu impossível  reconto e partilha, restando-nos apenas deixar passar o tempo sobre elas, como uma nuvem de pó, que ao poisar deixará pouco percetivel a sua grafia e o seu significado. E aí talvez possamos de novo começar a restabelecer a cadência da respiração, parar o caudal das lágrimas, tirar do corpo o peso das palavras que nos foram ditas. Até um dia.   

domingo, 4 de novembro de 2012

A casa


É muito antiga e já foi muito velha, estando agora nova e bonita. Falo de uma casa, com quintal e um poço, algumas árvores de fruta, flores, uma eira, um alpendre com lenha para a lareira e uma arrumada, como sempre dissemos e continuamos a dizer, onde se guardam algumas velharias de outros tempos. Não as deitámos fora ainda, são uma memória necessária, estão lá porque sim e porque não podem ainda ir para a reciclagem. A reciclagem é um procedimento moderno, util, mas nem sempre adequado quando precisamos de manter atuais as memórias antigas. Num dia certo de um tempo que há-de vir, arrumamos a arrumada, despimo-la das velharias e fica tudo limpo. As memórias essas vamos guardá-las na gaveta do coração que é enorme e tem várias divisões.
No interior da casa, mudámos muita coisa. Ou melhor, pintámos de novo o espaço renovado, mantendo o essencial, que é como quem diz, as histórias de quem lá viveu, sonhou, amou...colocámos fotografias: de pais, filhos, tias, avós, em diferentes lugares e épocas, mantendo o fio do tempo que ligou e desligou quantos por lá viveram. De facto e em relação, porque a casa nunca teve muita gente. Mas passa por ela, quando a olhamos, muitos rostos e pessoas, alguns que ainda estão entre nós outros que já partiram, mas que fazem da casa a sua força maior. E ela é pequena, mas amplia-se quando vemos a máquina da costura, o metro de madeira de medir os tecidos, as cadeiras pequenas das crianças se sentarem, oa travesseiros de renda da cama com cem anos, recuperada e ainda no mesmo quarto. Amplia-se mesmo, fica enorme, quando da janela se avista o braço da ria e os juncais e na rua passa um homem em cima de um carro de bois. Se formos às escadas que sobem para a porta da rua, conseguimos ouvir o vento das madrugadas onde saíamos de bicicleta para ir apanhar a camioneta que nos lavava ao comboio que ia para a cidade onde estudávamos. Esta é uma amplitude tremenda, fica o tempo suspenso e sentimo-nos novamente muito jovens e aprendizes.
Dentro da casa e porque o presente às vezes tem que brigar um pouco com o passado, com delicadeza e respeito, colocámos flores, quadros de praias e conchas, cortinas em pano de linho e com bocados de renda, uns móveis de madeira clara, vergas e almofadas, carpetes e tapetes de cores vivas e frescas. Mantivemos alguns móveis antigos que casam bem com os outros, jogando neste mistério das alianças entre o que foi e o que queremos que seja: uma casa que se reconstroi no presente, mantendo vivas as memórias, os laços e os afetos. Para que seja mesmo uma casa, cheia de historias, cheiros e imagens, ainda que pequena e antiga, mas uma casa. Não gostamos de habitações.