domingo, 28 de outubro de 2012

A vida larga do meu filho


O meu filho mais novo faz amanhã 21 anos. Quando nasceu e saiu de dentro de mim, balbuciei umas quantas palavras em tom de poesia e senti como se uma onda imensa me inundasse e a água corresse veloz dentro e para fora de mim. Creio que ficou um pouco marcado por isso. De espírito livre e alma errante, o meu filho procura a imensidão da vida, numa atitude desassombrada e apoiado em muitas palavras que maneja com sentido, empenho e oportunidade. Gosta de escrever e disso pensa fazer profissão. Lembro-me do seu jeito de ser bebé e menino, corpo redondo e quente, bracinhos ternos, rindo com alegria de tudo, bem disposto e brincalhão. Lembro-me do seu jeito de me abraçar e fazer perguntas e do seu crescimento sereno. Em menino, pois. Tenho saudades desse tempo, de ser uma jovem mãe (com 30 e tal anos somos ainda muito jovens) e de nada desassossegar a espera do futuro. Lembro-me das festas de aniversário, ano após ano, das velas a aumentar, dos amigos pequenos que iam ficando mais velhos e dos amigos adultos que sempre apareciam cá por casa. As fotografias, numa caixa no sótão, mostram este caminho, de bebé até agora. E agora o meu filho está grande, feito um rapaz enorme e procura o mundo ao seu redor e o outro que não vê, mas sabe que existe para lá do horizonte, onde quer chegar. Amanhã, vamos ter um bolo (o mesmo de sempre, com gila e amêndoa), 21 velas, os velhos amigos e os parabéns a você. E quando apagar as velas, vou novamente sentir saudades da sua boca pequenina quando, com dificuldades e caras engraçadas à mistura, soprava a chama. 
É sempre assim…e mesmo sabendo da importância e inevitabilidade da vida larga do meu filho – que é como quem diz, a vida para além de mim e de nós, os cá de casa – sinto saudades da sua vida mais curta, numa geografia mais contida e segura, dos cantos da casa, da rua no bairro, da escola. Uma geografia onde com facilidade dava os pontos cardiais e apontava direção  a direção. Coisa que numa vida larga, com horizonte a perder de vista é muito mais difícil. E sei que tenho que resistir à vontade de lhe oferecer de presente um mapa com tudo assinalado. Para além da minha eventual tranquilidade, isso seria muito enfadonho para quem faz 21 anos.
Parabéns, filho!     
  



A propósito do título Andar aos dias


Para que fique mais claro a razão da escolha do nome para este blogue, aqui fica o texto incial que fiz e não foi possivel incluir no cabeçalho...  

Andar aos dias

Dizia-se, quando era pequena, de mulheres que trabalhavam em casa de outros, fazendo serviços e tarefas domésticas dos mais variados, conforme fosse pedido e necessário. Ficou-me a expressão desse tempo, algumas imagens de rostos de mulheres fortes e doces, carregando palha, lavando a loiça, cozendo botões e bainhas de saias. Mulheres que estavam e não estavam, conforme fosse de maré ou feição das lides domésticas e do campo…Andar aos dias era fazer de tudo um pouco, em casa alheia, que se tornava um pouco sua, apesar de andar aos dias fosse condição de gente de fora   Desse tempo o infância, guardo a estranheza da fragilidade desse vai e vem, contra a imensidão da presença, feita cumplicidade, pela força dos laços, da confiança e do trabalho. 
Quando cresci e mulher me tornei, resolvi essa estranheza dentro de mim. Compreendi que na vida andamos todos aos dias, ensaiando entradas e saídas, em diferentes casas e lugares, agarrando por dentro e por fora aquilo que podemos, sabemos e sonhamos. Numa insustentável leveza de ser e muito para além da eternidade com que nos ensinaram a pensar e a sentir os dias e a vida.

Carmina

O meu avô chamava-a vezes sem conta, principalmente à noitinha, pela hora do terço à lareira, quando a desfiar rosários, se lembrava de perguntar se a casa estava trancada.
- Carmina, o pátio está fechado? E a minha avó respondia que sim, numa paciência morna e meia desprendida, de quem aprendeu a entoar as palavras de acordo com o momento e a situação.
- Carmina, o que levas aí? - Umas espigas, homem, respondia impaciente e rápida, mostrando parte do avental, para esconder as batatas e o feijão que dava à vizinha, em tempos de colheitas magras…
- Carmina, onde estás? - Aqui, homem de Deus…

A minha avó chamava-se Carmen, mas sempre me fascinou este nome assim dito pelo meu avô, num misto de intimidade e adaptação livre, fazendo justiça à sua maneira de ser, mulher inteira, doce e agreste, atenta e assertiva.
Convocá-la neste blogue é um tributo ao meu tempo de infância e nele ao espaço da minha avó, símbolo de afeto, liberdade, ousadia, inteligência, sensatez e coragem.
Convocá-la assim para primeiro texto é abrir com chave de ouro a porta das palavras e reafirmar em jeito de homenagem, a importância da sua memória na minha vida…o aido verde e as ameixas na árvore, as histórias de lobisomens em noites de luar, a escolha dos feijões secos no alpendre, as dores de barriga curadas com azeite morno, as explicações sérias de se ficar mulher em terra de homens. Convocá-la é convocar-me, através do seu nome, Carmina, que o meu avô repetia vezes sem conta e que me soou sempre como uma melodia quente a marcar a cadência da vida e do amor.